Resenhas

O Capote e outras histórias

Nikolai Vassílievitch Gógol foi um escritor nascido no Império Russo, porém hoje sua cidade natal pertence à Ucrânia, o que provoca uma disputa sobre sua nacionalidade entre Rússia e Ucrânia. Independente desse impasse, Gógol desempenhou um papel fundamental na literatura russa do século XIX, o que fica ainda mais claro na célebre frase de outro russo de peso, Fiódor Dostoiévski, ao afirmar que: “Todos nós saímos do Capote de Gógol”.

Podemos dizer que a presente reunião de histórias, organizada pela Editora 34 e com traduções de Paulo Bezerra, traz cinco histórias que se dividem entre duas temáticas: a vida na cidade e o misticismo do campo.

Nas primeiras narrativas, entramos em contato com o cotidiano de São Petersburgo através de três funcionários públicos. A história que dá início à obra é O Capote, escrita em 1842, onde acompanhamos a saga de Akáki Akákievitch e seu capote. Parece exagero o uso da palavra “saga”, mas é justamente ela que define a trajetória de Akáki, um funcionário de baixo escalão na Rússia czarista, de retórica deficiente e alvo de zombarias, em sua busca por uma vestimenta decente para enfrentar o frio congelante.

A fixação de Akáki pelo capote pode ser entendida como um tipo de “razão de viver” para o personagem. Os momentos onde ele se empenha nessa busca – seja para adquirir o capote, seja para recuperá-lo -, são os únicos em que percebemos alguma empolgação do funcionário público, cuja existência é totalmente focada no trabalho. Além disso, há uma crítica evidente à burocracia, a qual é representada de uma forma que beira o ridículo; o que, por sinal, muitas vezes é uma imagem bastante justa para representá-la.

Em seguida temos Diário de um Louco, escrita em 1835, onde entramos na mente de um homem que vai perdendo a sanidade ao longo da história. A forma com que o autor descreve a deterioração gradativa da mente desse personagem é mais uma prova incontestável da competência de Gógol enquanto escritor. A despeito de seu característico humor sarcástico, é uma leitura densa, que chega a ser angustiante. E muito boa, claro.

Encerrando as narrativas urbanas está O Nariz, de 1836, que é a história mais sem cabimento dentre as cinco e, talvez por isso, a mais impressionante. Nela, um homem acorda e se percebe sem nariz. O nariz, por sua vez, é personificado e inclusive anda pelas ruas muito bem vestido, aparentando ser até um conselheiro de Estado, cargo mais alto do que de seu próprio “dono”.

 
Chama a atenção o fato de que Gógol usa planos de fundo banais e realistas para narrar acontecimentos completamente absurdos. Assim, o autor é o que podemos chamar de precursor do realismo fantástico, que foi, de fato, difundido no início do século XX, principalmente na literatura latino-americana. Ao ler essa história, não pude deixar de me perguntar se Douglas Adams e Lemony Snicket teriam bebido da fonte de Gógol. Guardadas as devidas proporções, o estilo nonsense do russo me lembrou muito os autores de Guia do Mochileiro e de Desventuras em Série.
 

As duas últimas histórias, como dito anteriormente, apresenta ao leitor o misticismo do campo através do folclore ucraniano. Viy e Noite de Natal se complementam, de certa maneira. Enquanto Noite de Natal pode ser entendido como a vitória da vida conta a morte, em Viy temos o contrário, a vitória da morte sobre a vida.

Noite de Natal, de 1832, é totalmente diferente de tudo o que você pode esperar de uma narrativa natalina, a começar por um de seus personagens principais: o diabo. E o diabo tem um plano para aquela noite: roubar a lua. Partindo desse plano, ele e outros personagens vivem uma noite louca, cheia de acontecimentos estranhos e absurdos.

Já em Viy, de 1831, o enredo gira em torno da disputa entre um filósofo e uma bruxa. Utilizando uma atmosfera tensa e sombria em sua construção, fica fácil identificar que esse texto trata de um outro lado do folclore da Ucrânia, diferente daquele da história anterior. Apesar disso, elementos clássicos da escrita de Gógol, como a ironia, por exemplo, estão presentes.

Como mencionei no início da narrativa, todos os textos foram traduzidos diretamente da língua original – o que é de suma importância, a propósito – por Paulo Bezerra, especialista em literatura russa e reconhecido por sua competência como tradutor. Além desse, outro aspecto positivo da edição da Editora 34 são as notas de rodapé usadas habilmente para esclarecer peculiaridades ou aspectos históricos relacionados à Rússia que, porventura, causem estranheza aos leitores menos familiarizados com aquela cultura.

Avaliei como nota 3 apenas porque achei as três primeiras histórias muito superiores às duas últimas, que me entediaram um pouco em alguns momentos (mas não durante todo o texto). Assim, uma leitura que começou a todo o vapor, perdeu o gás nas últimas páginas e me fez tirar uns pontinhos na nota geral. Contudo, se fosse analisar apenas as narrativas urbanas, seria nota cinco, com certeza.

De qualquer forma, é uma obra exemplar, escrita não só por um gênio, mas por um dos cânones da literatura mundial, um autor vanguardista e original, o qual, apesar de ter espalhado sua semente em todo o planeta, era único e impossível de imitar.

Autor: Nikolai Gógol
Editora: 34
Nota: 3/5

8 Comentários

  • Michelly Santos

    Oi Ozzy!
    Crime e Castigo é um de meus livros preferidos!
    Gógol é o grande mestre da literatura russa, acho que vc pode gostar desse livro sim! 🙂
    Lê e depois me conta!
    Beijos!

  • Ozzy

    Ola,
    Se eu nao me engano a ultima (e unica) vez que entrei en contato com a literatura russa foi no Ensino Medio, com Crime e Castigo, que nem cheguei a terminar, mas confesso que meu interesse por esses autores classicos russos e grande, nunca tinha ouvido falar desse, mas a descriçao desses contos cheios de fantasia e realismo fabtastico me chamou, e muito, a atençao, vou tentar pega-lo para ler o mais rapido possivel.
    Livros de conto como este costumam apresentar mesmo essa variaçao de qualidade entre um e outro, como voce comentou, mas eu gosto muitos dessas coletanias de contos, principalmente de autores que gostam de explorar diferentes estilos e temas, costumam ser leituras bem agradaveis.

    xoxo

  • Michelly Santos

    Oi Nanda!
    O Nariz é uma história maravilhosa! Pode parecer sem sentido, mas acredito que Gógol sabia muito bem o que estava fazendo. Espero que vc goste do livro!
    Também quero ler A Morte de Ivan Ilitch, mas vou ler outros do Tolstói antes.
    Beijos!

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