Literatura descomplicada

A importância de uma boa tradução

Todos nós temos um jeito próprio de nos expressar, seja através de um texto, seja através da fala. Muitas vezes, esse jeito é tão original que vira uma marca, o que, não raro, ocorre com grandes escritores. E é aí que repousa a importância de uma boa tradução das obras literárias.

Imagine um autor como Dostoiévski, cuja escrita é peculiar a ponto de se tornar quase um personagem à parte dentro do enredo, sendo traduzido de forma equivocada. Nesse caso, até o sentido do texto é prejudicado e, no final das contas, o leitor que lê uma obra mal traduzida fica com a impressão errada sobre ela ou sobre o autor. É quase como não ter lido mesmo tendo lido.
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Confuso isso, né…
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Vamos começar levando em consideração as características de cada língua. Existem frases que são intraduzíveis pelo simples fato de que não causariam o impacto desejado em outros idiomas. É o que acontece, por exemplo, em poemas onde o jogo de letras ou de palavras é imprescindível para que o leitor sinta a emoção proposta pelo autor.
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Modesto Carone, famoso no Brasil por traduzir as obras de Kafka, faz uma análise sobre o tradutor literário em sua obra Lições de Kafka, onde cita um verso de João Cabral de Melo Neto: “Se a serra é terra, a cabra é pedra”. Nesse trecho, a intenção de João Cabral é trazer a sensação da aridez do Nordeste para o leitor, como se o verso estivesse coberto por pedregulhos. Agora me diga, que outra língua conseguiria alcançar a intenção original desse verso?
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Com esse exemplo, fica óbvio que uma boa tradução precisa ultrapassar inúmeras barreiras para conseguir um resultado satisfatório, e nós, leitores, devemos valorizar e estimular a produção de editoras que se importam em nos entregar um texto com a maior qualidade possível.
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Particularmente, não concordo com o ditado popular italiano que relaciona o tradutor ao traidor (“traduttore, traditore”), visto que existem inúmeras traduções que fazem justiça às obras originais. Sobretudo àquelas cuja tradução foi feita a partir do texto original.
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Ora, imaginemos um texto escrito em russo e traduzido para o francês. Querendo ou não, algo do sentido contido naquela história já foi alterado, mesmo que minimamente. O tradutor têm sua própria identidade, que inevitavelmente transparece em sua escrita, e também suas limitações, as quais são encontradas até mesmo na própria língua, como vimos acima. E aí pegamos essa obra e fazemos uma segunda tradução, dessa vez do francês para o português. A probabilidade de muitas particularidades do texto terem ficado pelo caminho são imensas, além de, com certeza, ter se perdido o tom particular do autor original (que, como falei no início desse texto, cada um tem o seu).
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Por isso vemos cada vez mais editoras apostando em traduções direto do idioma original, como no caso da Editora 34, reconhecida por esse diferencial. Mas ela não é a única. A Martin Claret tem apresentado títulos de Dostoiévski traduzidos por Oleg Almeida. Deixando de lado as polêmicas que cercam a editora e de acordo com minha experiência pessoal na leitura de Crime e Castigo, Oleg conseguiu passar ao leitor a alma do renomado russo, num texto truncado e complexo como o original.
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Outras editoras que apostam em traduções confiáveis são Companhia das Letras, Autêntica, Zahar, Globo, LeYa, Record, só pra citar algumas que já foram contempladas, inclusive, com o Prêmio Jabuti na categoria tradução. Obviamente, essas não são as únicas, cabendo ao leitor pesquisar sobre a tradução antes de adquirir o livro.
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Não adianta querer simplificar a obra, deixar o texto mais fluido e perder as características que consagraram um escritor. Essa artimanha pode até agradar parte do público mas é uma tremenda falta de respeito não só com os autores (ou com a memória de grande parte deles), mas também com os leitores que prezam por uma literatura de qualidade.
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A chave de uma boa tradução parece ser o equilíbrio. Como tudo na vida. O tradutor não pode, de forma alguma, anular as características do autor que está sendo traduzido, mas também não deve ser literal demais, sob pena de entregar um texto que não fará sentido num ambiente cultural diferente daquele para o qual foi criado.
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Portanto, trocadilhos, ditos populares, regionalismos e quaisquer outras características inerentes à linguagem de origem do texto devem, sim, serem modificadas para que ele também faça sentido para os leitores de outros países, os quais têm seus próprios trocadilhos, ditados e figuras de linguagem. Uma piadinha tipicamente brasileira não faria muito sentido no Japão, certo? Portanto, a melhor decisão seria traduzir essa piadinha para algo que dará, aos leitores de lá, o sentido proposto pela narrativa original.
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Mas atenção, é modificar sem alterar o sentido do texto. Em outras palavras, essas mudanças servem, justamente, para que o leitor tenha a experiência que foi proposta pelo autor da obra, a qual não seria atingida no caso de uma tradução literal.
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Outra questão importante diz respeito à fidelidade do texto traduzido à época em que ele foi originalmente escrito. Um bom tradutor não moderniza textos clássicos, assim como não faz construções arcaicas para narrativas contemporâneas. Isso pode, inclusive, ser abrangido pelo que falamos sobre o respeito às características originais do autor, mas nunca é demais destacarmos algo que é tão importante para o sentido do texto final.
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No mais, fica aqui a minha homenagem e meu agradecimento àqueles que derrubam as barreiras da linguagem e nos permite ter contato com obras literárias indispensáveis. E aos leitores, faço um pedido: vamos valorizar as edições cujos profissionais dedicaram seu tempo e trabalho para nos entregar traduções justas e confiáveis, as quais nos permitem viajar pelo mundo todo, ampliando nossos horizontes através daquilo que mais amamos, a literatura.

25 Comentários

  • SILVIANO OLIVEIRA SALAZAR

    Michelly, bela postagem e trabalho.

    Sou amante dos livros em especial literatura clássica.

    Há algum tempo acompanho a Martin Claret,

    Deixei de comprar muitos livros por causa do desleixo da Martin Claret com as traduções, achei muita falta de respeito.

    Hoje verifico e pesquiso muito antes de comprar um clássico, principalmente se a tradução é a partir do original e o pedigree do tradutor.

    A exemplo se a tradução é do Oleg Almeida ou da Regina Célia de Oliveira, eu compro.

    Parabéns á Martin Claret, por se regenerar e trabalhar duro para conquistar está seleta fatia do público leitor brasileiro.

    E por último, seria legal vir junto á tradução, um encarte mostrando como o trabalho foi feito, inclusive com fotos do original e o pedigree do tradutor.

    Grande abraço

    [email protected]

    • Michelly Santos

      Algumas edições até trazem informações sobre a tradução, como pequenos textos explicando como foram feitas, pena que são poucas que fazem isso. Sobre a especialização dos autores, eu sempre pesquiso no Google quando encontro um profissional que ainda não conheço. 😉

  • Tully Ehlers

    Amei o texto, e é exatamente isso. Eu sou tradutora literária, trabalho para a editora Pedrazul, traduzindo a coleção Anne de Green Gables e suas continuações, da autora canadense Lucy Maud Montgomery. A arte da tradução não é brincadeira. Eu sinto o peso dessa responsabilidade cada vez que sento na frente do meu computador para traduzir. Está na minha responsabilidade se o leitor vai gostar daquele autor, ou daquela obra. Está em mim o poder de fazer com que o leitor receba a mensagem específica daquele autor. É uma obra magnífica e difícil, mas é também um enorme privilégio. Obrigada por este texto, pois sei também que a maior parte dos leitores ignora a importância dos profissionais que estão por trás das palavras que estão lendo. Excelente texto, e amei o blogue.

    • Michelly Santos

      Que honra receber seu comentário! Gosto muito do cuidado que a Pedrazul tem com seus livros, desde a escolha da capa até a tradução! Ainda não li Anne, mas não foi por falta de vontade! Muito obrigada pelo seu feedback e todo meu respeito a você e aos seu colegas de profissão!

  • Nathan Jefferson de Souza

    Bom dia.
    Gostria de ler o livro, “Emílio ou da Educação”, de Jean – Jacques Rosseau. Encontrei dois no Brasil. Da editora, Edipro, tradução de Laurent de Saes e da Martins Fontes, tradução de Roberto Leal Ferreira.
    Alguém saberia me indicar a melhor tradução.
    Desde já, obrigado.

    • Michelly Santos

      Olá Nathan!
      Não li essa obra,portanto não posso afirmar qual delas é melhor. O que posso te dizer é que ambos os tradutores são profissionais renomados no mercado e provavelmente as traduções são boas. O Laurent é fluente em francês, portanto presumo que a tradução dele seja direto do idioma original (mas é apenas uma presunção, não encontrei nenhuma informação que confirme isso). Já com relação a Roberto, não encontrei nem a informação sobre a tradução ser direta ou não, nem quais línguas ele fala.
      Minha opinião é que quaisquer das duas edições irão te atender bem, aí vai da sua preferência pela capa ou preço. De qualquer forma, espero que goste do livro!
      Beijo!

      • Nathan Jefferson de Souza

        Ok.
        Muito obrigado. Devido ao preço, acabei por comprar um do Piaget, que é mais barato, mas sendo assim, futuramente comprarei o da Edipro, uma vez que é traduzido pelo Laurent, que você bem referenciou, e também pela capa, que gostei mais, rs.
        No mais, parabéns pelo blog, gostei muito, e recebi resposta, rs, o que muitas vezes é difícil.

        • Michelly Santos

          Aqui você sempre terá resposta (mesmo que às vezes demore um pouquinho)! Muito obrigada, espero que você continue acompanhando o blog! Agora também tenho um canal no YouTube, se quiser conhecer, é só clicar aqui 😉

  • Angelo

    Olá, Michelly. Excelente texto. Parabéns. Acha confiável essas traduções da Martin das obras de Dostoiévski? Achei que foram muitas traduções em um curto espaço de tempo. Abraços!

    • Michelly Santos

      Oi Angelo!
      As obras de Dostoiévski que são traduzidas pelo Oleg Almeida são muito confiáveis sim. O Oleg é russo naturalizado brasileiro, veio para cá com cerca de 34 anos. Particularmente, gosto mais das traduções dele do que de outros tradutores famosos do russo. Acho que ele demonstra melhor o estilo truncado de Dostô, ele não fica simplificando o texto pra que a gente compreenda mais facilmente, sabe? Enfim, as traduções da Editora 34 são excelentes também, mas se você pegar um livro traduzido pelo Oleg, pode confiar! 😉
      Beijão!

  • Ozzy

    Ahoy,
    Olha que traduçao é um assunto complicado não é mesmo? Existem tantas opiniões diferentes sobre o tema…
    Eu concordo 100% com o que diz no texto, uma boa traduçao e aquela que mantem as caracteristicas do texto original, que sbeja traduzida do original, e na qual o tradutor suma, que nao de uma de Haroldo de Campos da vida…
    O que mais se encontra no mercado editorial hoje, sao traduçoes ruins, principalmente em livros que seguem determinadad tendencias do mercado, vide ai a qualidade das traduçoes dos YAs que vieram naquela onda pos-John Green.
    xoxo

    • Michelly Santos

      Oi Ozzy!
      Verdade, cada um pensa algo diferente sobre traduções. Tem de tudo, dos mais rígidos aos mais light! Eu acho que fico no meio-termo…
      O que acontece com os YA, muitas vezes, é a pressa de publicá-los enquanto estão bombando. Aí sai com tradução meio estranha, erros de revisão… Isso é ruim pq qq tipo de livro merece carinho, ainda mais um YA que pode conquistar ou afastar um leitor em formação, né?! :/
      Beijos!

  • Dafne Antunes

    Excelente texto!

    Sabe que faz pouco tempo que passei a me preocupar com qual edição comprar? Quero dizer, às vezes há várias edições diferentes, de tradutores diferentes, de uma mesma obra clássica. Realmente, tradução é coisa séria! E nada fácil… Isso me faz pensar também o quanto é precioso poder ler uma obra na língua original. Isso me motiva ainda mais a estudar inglês. Mas não pretendo aprender russo, por exemplo, então estou muito feliz de podermos ter boas traduções. 🙂

    "É quase como não ter lido mesmo tendo lido" Que coisa, não… É como ter lido uma obra baseada… e não A OBRA. Mas, no fim, tradução é isso mesmo. Só que queremos que seja o mínimo possível.

    Abçs

    • Michelly Santos

      Oi Dafne! Obrigada!
      Também me empenho para ler em inglês, pelo menos, mas tem outras línguas que quero aprender, como o francês, por exemplo. Russo tb não está entre minhas prioridades, então vamos de tradução mesmo! hehe
      Beijos!

  • Isabelle Brum

    Olá, boa tarde.
    Adorei seu texto. Você disse tudo (e mais um pouco) sobre esse trabalho tão complexo que é a tradução.
    Quando eu estava na faculdade, uma professora comentou conosco uma vez que a tradução é um processo de adaptação, como acontece entre um livro e um filme, por exemplo, e eu concordo com essa visão. O tradutor tem a difícil tarefa de adaptar um texto de uma língua para outra, modificando quando necessário porém sem perder a essência daquela obra. E é por essas e outras que eu valorizo muito esse trabalho, em especial da tradutora dos livros da série "Harry Potter" (a Lia Wyler), que apesar das inúmeras críticas que recebeu de leitores brasileiros, foi elogiada pela própria Rowling pela tradução, e agora que eu estou relendo a série em inglês, vou percebendo o quanto ela adaptou muito bem o que não dava para ser traduzido ao pé da letra (que a propósito, ficaria muito ruim se ela tivesse feito).
    Enfim, só queria dizer que amei seu texto e espero que possamos ter cada vez mais bons tradutores ^-^

    Beijinhos

    • Michelly Santos

      Oi Isabelle!
      Fiquei muito feliz com seu comentário, muito obrigada pelo carinho! 🙂
      Eu vejo a tradução exatamente dessa forma, como uma forma de adaptar um texto numa língua de uma forma que ele encaixe perfeitamente na outra.
      Sobre HP, sei das polêmicas mas nunca li em inglês pra tirar minhas conclusões, então sigo satisfeita com a tradução. Algumas coisas me incomodam, não vou negar, como é o caso da Plataforma 9 e meia (que é 9 3/4) e Tiago no lugar de James Potter, mas são coisas que eu consigo conviver com elas. kkkkkkkkk
      Beijos!

  • Fiacha

    Viva,

    Gostei de ler e há uma grande verdade o leitor paga para que o trabalho fique bem feito, merecemos que o trabalho fique bem feito

    bjs

  • Nanda Sales

    Bom saber que a Martin Claret está dando mais atenção a suas traduções. Até porque as capas dessa editora são maravilhosas e merecem traduções a altura =D

  • Rudi

    Oi Milly,
    Não acho que eu tenha inteligência suficiente para identificar quando uma tradução não é bem feita, mas já percebi, em Caixa de Pássaros um erro onde o personagem deveria "estar" e traduziram como se ele "fosse" (verbo to be, pelo menos, eu conheço) e em um dos livros Coisas Frágeis do Neil Gaiman tem uma expressão que perdeu o sentido na tradução. Uma coisa que me irrita bastante, até porque eu consigo identificar com mais facilidade do que tradução, é a revisão… é difícil encontrar livros bem revisados, né?!

    • Michelly Santos

      Oi Rudi!
      Acho que não é questão de inteligência esse lance de identificar uma boa tradução. Tanto pq, primeiro, vc teria que saber falar o idioma e já ter lido o original para julgar a tradução por si só; segundo tem as técnicas de tradução e nós teríamos que estudar isso para poder falar com mais propriedade. Eu acho que o que nós, meros mortais, podemos fazer com relação a identificar uma boa tradução é pesquisar sobre o tradutor e sobre o texto dele mesmo, através de sites ou canais de pessoas especializadas no assunto.
      Mas igual vc citou o livro do Neil Gaiman, tem uns erros de tradução que são tão bizarros que qq um identifica tb né?! kkkkk
      Concordo com vc com relação à revisão. Tem uns livros, até mesmo clássicos, que são tão mal revisados que dá dó. :/
      Beijos!

  • Dora Sales

    Quando eu comecei a ler livros clássicos não me importava muito com as traduções, para falar a verdade nem tinha conhecimento da diferença entre traduzir uma obra diretamente da língua original ou a partir de outra tradução, mas com o passar do tempo fui aprendendo um pouco mais sobre tradução e passei a admirar essa profissão.
    Hoje não compro um livro sem antes pesquisar sobre a tradução feita pela editora, pois quero ter a melhor e mais "fiel" experiência possível com a obra =D

    Amei a sua postagem, ela é, além de muito bem feita e escrita, de utilidade pública e poderá ajudar muitos leitores por aí Beijão!

    • Michelly Santos

      Oi Dora!
      No início eu tb não tinha noção dessa diferença mas qd comecei a me preocupar com isso percebi que melhorei muito minha experiência de leitura. Hoje eu tb não compro um livro sem saber sobre a tradução antes.
      Muito obrigada pelo apoio de sempre! 🙂
      Beijos!

  • Nanda Sales

    O que dizer desse texto? Simplesmente verdadeiro! Também dou bastante importância para a tradução, desde que comprei o livro Madame Bovary da Martin Claret e simplesmente não consegui terminar a leitura por causa da tradução esquisita e das notas de rodapé que muitas vezes nada tinha a ver com a história. Gosto muito da editora (Martin Claret), mas sua tradução as vezes deixa a desejar. Por enquanto, considero que as editoras 34 e Itatiaia são as com o trabalho de tradução mais impecável, por essa razão não perdi meu tempo e já comprei vários contos russos de uma (editora 34) e A Divina Comédia e Dom Quixote da outra (Itatiaia).
    Gostei de ver que você citou mais editoras premiadas no quesito tradução, é bom saber quais editoras confiar =D
    Beijinhos

    • Michelly Santos

      Oi Nanda!
      Eu já ouvi algumas reclamações sobre a Martin Claret mesmo mas parece que eles estão mais cuidadosos ultimamente. O fato deles terem convidado o Oleg Almeida para traduzir as obras de Dostoiévski direto do russo é um bom sinal, né?!
      Não conheço a Itatiaia, vou pesquisar agora! 🙂
      Beijos!

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