Literatura descomplicada

Sobre foco narrativo e a importância do narrador

Tema de extrema importância na teoria literária, o ponto de vista pelo qual um história é contada denomina-se foco narrativo. Esse poderá ser em primeira, segunda ou terceira pessoa, ou até mesmo uma combinação de todos eles. O narrador, por sua vez, pode ser tanto um personagem do texto ou alguém de fora, às vezes até mesmo o próprio autor.

E qual é a importância disso pra história? A resposta à esse questionamento é algo que, não raro, deixamos passar sem uma reflexão mais profunda. Tendemos a pensar: o narrador é importante porque conta os fatos. Okay, isso é óbvio, mas não deveríamos parar por aí.

Sou do time que defende que quando o leitor conhece minimamente a teoria literária ou pelo menos alguns conceitos básicos, sua experiência de leitura se amplifica, tornando-se mais completa já que quanto mais você sabe sobre um assunto, melhores serão as conclusões que irá inferir dele. Logo, se você tem algum conhecimento de literatura, consequentemente também aproveitará muito melhor a mensagem que cada livro pretende passar.

Pois bem, voltando ao narrador, sua escolha implica não só no quanto ele próprio saberá sobre a trama mas também quanto de informação você, como leitor, terá acesso. Um narrador onisciente, por exemplo, sabe tudo o que ocorre com todos os personagens, inclusive no que diz respeito aos seus pensamentos e sentimentos. Ele é como um deus da narrativa. Já o narrador em primeira pessoa normalmente não é confiável, pois quando contamos uma história sob o nosso ponto de vista, sem contraditório, tendemos a demonstrar os fatos de modo que nos favoreça, seja consciente ou inconscientemente.

Em Lolita, narrado em primeira pessoa por Humbert Humbert, o leitor praticamente é levado a sentir simpatia por um pedófilo e isso só acontece graças à competência de quem nos conta a história: ele mesmo. Não há como saber, de fato, como a garota abusada se sentia, pois apesar de imaginarmos o trauma que está sendo causado, o narrador garante que a garota retribui seu amor. E como só temos a palavra dele, não temos um contraponto.

Outra observação importante sobre a narrativa em primeira pessoa reside no fato de que não é obrigatório que o protagonista seja o narrador. Qualquer personagem do texto pode ficar com essa função, mas o que o leitor não pode se esquecer é: desconfie sempre de uma história onde você sabe apenas um lado dela.

O foco narrativo que enseja mais esclarecimentos é, sem dúvidas, o que se faz em terceira pessoa. Esse narrador pode ser onisciente, como já falamos, ou observador. O narrador onisciente conhece não só os fatos, mas também os pensamentos e as emoções dos personagens. Quando esse conhecimento abrange todos os personagens da trama, será chamado de universal; quando ele só expressa sua onisciência sobre um determinado personagem, é chamado de seletivo. O narrador observador também pode ser chamado de objetivo, e é aquele que sabe apenas sobre os fatos mas não sobre as emoções e pensamentos dos personagens.

Observe que cada tipo de narrador irá cumprir uma função determinada, definindo quais as informações o leitor terá ou não acesso. Nada em um livro existe por acaso, portanto é recomendável que durante a leitura você analise não apenas os personagens, mas também o narrador escolhido para te contar aquela história.

Seja ele personagem ou não, o narrador irá mostrar sua personalidade e a partir de sua análise é possível perceber como devemos tratar aquele texto, se com desconfiança, se de forma crítica ou se estamos tendo acesso verdadeiro à universalidade dos fatos.

Para que essa análise seja feita, há ainda mais uma particularidade que deve ser observada: o tom do narrador. O tom crítico faz observações sobre a trama, o que não só deixa clara a opinião do narrador como induz o leitor a uma determinada conclusão. Tome cuidado com esse tipo de narrador para que você não seja influenciado. Você pode concordar ou discordar dele, mas não se deixe levar, pense a história por si só.

Por outro lado o tom neutro não exprime nenhum tipo de opinião mas apenas narra os fatos. Esse tipo de narrador só é perigoso quando o leitor confunde a falta de opinião com a concordância do narrador sobre aquilo que está sendo narrado. Lembre-se, o narrador neutro não concorda ou discorda de nada, ele está apenas te contando uma história. A análise dela fica totalmente por sua conta.

Por fim, não se esqueça de que numa única obra podem coexistir vários tipos de narradores, assim como várias ferramentas e estruturas narrativas, mas isso é assunto pra um outro artigo…

Só nesse apanhado fica claro o quanto é importante que você pense o livro além da história que está sendo contada. Há sempre uma intenção por trás, há sempre as influências culturais do local e da época em que o texto foi escrito, e há também as questões técnicas da escrita que, por ser um tipo de arte, muitas vezes esquecemos que existem fórmulas e muito estudo por trás.

Espero que a partir desse texto você passe a analisar os narradores com mais atenção, se é que você ainda não fazia isso. Depois volte para me contar se sua experiência com a literatura melhorou. Tenho certeza que a resposta será sim.

 

2 Comentários

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  • Sara

    Eu nunca fui de observar o narrador dos livros, principalmente bem no comecinho da minha vida de leitora. Mas então li “Dom Casmurro”, e fiquei chocada ao descobrir que um narrador de uma estória pode não ser confiável, porque para mim, em minha ingenuidade, quem contava tinha algum tipo de “obrigação’ de ser sincero. Desde então, me peguei questionando cada livro, e mais, passei a me questionar também, inclusive na vida real. Gostei que você trouxe esse tema a tona, e não seria nada mal aprender mais sobre isso.

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