Resenhas

Senhor das Moscas

Um grupo de crianças, mais precisamente meninos, vivendo sozinhos em uma ilha deserta depois que o avião que os transportava caiu – ou fez um pouco forçado, isso não fica claro na narrativa – e nenhum adulto sobreviveu. A época era a da Segunda Guerra Mundial e a história pode ser vista tanto como um espelho da condição humana, inclusive com reflexos na própria guerra, quanto como uma alegoria bíblica.

Claro que também é possível ler apenas como uma história de aventura, mas aí você vai desperdiçar reflexões capazes de te transformar, além de ser um desrespeito com William Golding.

Vencedor do Nobel de Literatura em 1983, mas publicado originalmente em 1954, Senhor das Moscas é aquele tipo de livro que quando acaba nos deixa com a sensação de termos muito a dizer mas não sabemos exatamente como dizer. Portanto, por mais resenhas e comentários que encontremos por aí, ninguém consegue esgotar a magnitude dessa obra.

O enredo é extremamente violento, por si só, mas fica ainda pior quando levamos em consideração que os agentes de toda aquela selvageria que passa a ocorrer num determinado momento da narrativa, são crianças. Golding consegue nos inserir nas cenas através de descrições muito competentes. Você chega a sentir o sol sobre sua pele, a água morna da piscina natural e o medo do desconhecido.

E quando falamos em medo, precisamos falar sobre um dos dois personagens de maior destaque: Jack. Apresentado como líder de um coro musical, o garoto passa a comandar o grupo responsável pela caça até que sua sede de poder desencadeia acontecimentos terríveis.

” ‘As regras!’, gritou Ralph. ‘Você está desobedecendo as regras!’
‘Estou pouco ligando!’
Ralph fez o possível para manter a calma.
‘Mas sem regras a gente não tem nada!’
Só que Jack já gritava mais com ele.
‘Que se danem as regras! A gente é forte – e caça! Se existir algum monstro, a gente caça também! A gente cerca, e bate, e bate, e bate!’ ” – Pág. 101

A exemplo de governantes totalitários espalhados pelo globo, Jack usa o medo como forma de controle social, escravizando aqueles a quem promete defender. E também como na vida real, os personagens se mostram mais dispostos a acreditar em discursos do que em atos.

Antagonizando com Ralph, o outro personagem central, Jack retrata o “estado de natureza” de Thomas Hobbes, ou seja, uma sociedade deteriorada graças a ausência do conceito de autoridade. Durante a narrativa de Senhor das Moscas, não há limite para que os garotos exerçam suas vontades.

É aí que se encontra o paralelo com a guerra, que não só representa o período em que a narrativa se passa, mas foi também quando Golding a escreveu. Suspeita-se que as crianças estavam sendo evacuadas devido aos conflitos que ocorriam na Europa, mas ao fugir da batalha dos adultos, eles tratam logo de criar sua própria guerra.

Outro ponto onde o autor se mostra genial, é na construção do destino de um dos personagens. Qual deles não vem ao caso, pois o objetivo aqui não é estragar as surpresas. Mas, fato é que todo o texto leva o leitor a acreditar em um determinado desfecho para o tal menino mas o que Golding guardava para ele era completamente diferente, se transformando num momento crucial para a narrativa, onde o grupo se vê completamente entregue à barbárie.

” ‘Você é um menino muito bobo’, disse o Senhor das Moscas. ‘Só um menino, muito bobo e ignorante.’ ” – Pág. 157

Mas eu falei em alegoria bíblica, lembra? Pois então, existe uma teoria que considera o Senhor das Moscas – não o livro, mas o personagem em si – uma representação de Belzebu, o que explicaria a cena onde ele aparece, que é realmente aterrorizante. Com origem no hebraico, Baal-Zebub seria o deus das moscas, mais tarde considerado pelos textos sagrados cristãos como o príncipe dos demônios.

Confesso que essa informação me deixou com sentimentos ainda mais confusos acerca dessa história. Afinal, estariam as crianças demonstrando que “o homem é o lobo do homem”, como preceitua o Leviatã de Hobbes; ou estariam elas agindo sob influência do demônio?

Enfim, Senhor das Moscas não é mesmo um livro para trazer respostas mas sim para te fazer questionar absolutamente tudo: homem, sociedade, religião, política, psicologia… Sua beleza se esconde num texto simples, sem grandes elaborações narrativas, com muitos diálogos – que tornam a leitura bastante fluida -, mas que traz mensagens duras e conflituosas.

As crianças, apesar de o tempo todo tentarem imitar o comportamento dos adultos, deixam transparecer mesmo por baixo de toda a violência, a inocência da infância. A ilha paradisíaca é também um cenário de horror. O homem é o verdadeiro monstro, e o monstro é apenas um homem.

Escrito como uma resposta a The Coral Island, de R. M. Ballantyne, a obra de Golding transformou-se num dos maiores clássicos ingleses de todos os tempos. A edição da Alfaguara é traduzida por Sergio Flaksman, que conseguiu transmitir a mensagem de Senhor das Moscas com maestria. São poucas páginas e a trama é tão incrível quanto perturbadora, portanto, se dê a oportunidade dessa leitura.
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Autor: William Golding
Editora: Alfaguara
Nota: 5/5

Um comentário

  • RUDIMAR BARONCELLO

    Oi Milly,
    Primeiramente, acho essa edição linda, adoro a tipografia de capas da Alfaguara e a seleção de títulos deles (apesar deos lançamentos mais recentes terem abandonado o detalhe característico da capa). Mas em especial essa ilustração de capa é incrível, com o céu e o mar trocando de lugar, acho que combinou bastante com a história.
    Enfim, li esse livro em 2017, se não me engano, e fiquei muito tempo tentando decidir se tinha ou não gostado dele, acabou que decidi que gostei sim, da mensagem que ele passa e do clima que ele tem, como voce disse muito bem, é um livro que levanta varios questionamentos sobre os mais variados assuntos. Nao sabia dessa ligação entre o Senhor das Moscas e Belzebu.
    Uma coisa que o livro me fez pensar bastante é na condição do ser humano como animal, de como é fácil nos tornarmos selvagens, como se fosse uma versão humana de O Chamado Selvagem, do Jack London. Ao mesmo tempo em que mostra a sede por hierarquia e necessidade de um líder, algo que não destoa tanto da questão de selvageria também, considerando as matilhas de lobos e vários outros coletivos de animais que possuem seus líderes.
    Grande abraço! !

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