Resenhas

Esaú e Jacó

O penúltimo romance de Machado de Assis, Esaú e Jacó, foi publicado em 1904, quatro anos antes da morte do autor. A narrativa acompanha as divergências entre dois irmãos gêmeos destinados a brigar desde o ventre da mãe, Natividade, conforme previu uma “adivinha”.

E tudo leva a crer que aquela previsão estava correta, a começar pelos nomes escolhidos para as crianças: Pedro e Paulo, os dois apóstolos que protagonizaram um dos episódios mais emblemáticos da Bíblia, quando Paulo se opõe a Pedro, o repreendendo por uma conduta dissimulada.

Foi a partir de outra referência bíblica que Machado teve a inspiração para seu romance. Esaú e Jacó eram filhos de Isaque e Rebeca, e também rivalizaram desde antes do nascimento. Enquanto na Bíblia a mãe dos garotos foi avisada por Deus de que seus filhos seriam representantes de duas nações, na história escrita pelo autor brasileiro essa divisão é representada pela preferência de Pedro pela Monarquia e de Paulo pela República, representando dois grupos diferentes.

Logo, a ambientação do livro passa pelo período de transição entre Império e República, e representa mais uma fonte de discórdia entre os filhos de Natividade.

Nesse ponto vale observar o fato de que Machado de Assis nasceu em 1839 e faleceu em 1908, sendo portanto, testemunha do período retratado, ocorrido em 1889 e tão crucial para nossa história. O autor, mais uma vez, nos ajuda a pensar o século XIX com a autoridade de quem viveu aquela época.

“[..] Em caminho, pensou no que perdia mudando de título – uma casa tão conhecida, desde anos! Diabos levassem a revolução! Que nome lhe poria agora?” – Pág. 125

É interessante, portanto, perceber as preocupações da gente comum que viveu a história que hoje só conhecemos através dos livros. O episódio do dono da confeitaria cuja única preocupação era o nome que colocaria na placa de seu estabelecimento (Confeitaria do Império ou Confeitaria da República?) mostra que o povo tinha preocupações muito mais simplórias em face às importantes transformações que aconteciam no país.

Outro exemplo disso é o fato de que mesmo depois de o Brasil ter sido declarado uma República, as pessoas continuavam sendo tratadas por seus títulos de nobreza, característica típica de uma Monarquia.

Traçando um inevitável paralelo com nossa realidade, o retrato do Brasil de Machado é bastante fiel ao que vivemos atualmente. Infelizmente são poucos os que se importam com as decisões tomadas pelos governantes, sendo que as pessoas parecem não perceber que elas influenciam diretamente em nossas vidas. E os poucos que debatem essas questões tendem a fazê-lo adjetivando e demonizando os que pensam diferente.

Ao propor reflexões sobre a política daquele momento conturbado, a narrativa é clara ao mostrar argumentos legítimos tanto da parte do monarquista Pedro, quanto da parte do republicano Paulo. E engana-se enormemente quem caracteriza Pedro como retrógrado e Paulo como moderno, pois o autor em momento nenhum ridiculariza um e eleva o outro. Na verdade, ambos possuem uma personalidade muito pouco cativante e até infantil, sendo que nenhum prevalece sobre o outro. Apesar de pensarem diferente, eles se espelham de tal forma em relação a seus defeitos que um não suporta sua imagem refletida pelo outro.

“- A razão parece-me ser que o espírito de inquietação reside em Paulo, e o de conservação em Pedro. Um já se contenta do que está, outro acha que é pouco e pouquíssimo, e quisera ir ao ponto a que não foram homens. Em suma, não lhes importam formas de governo, contanto que a sociedade fique firme ou se atire para diante.” – Pág. 205

Como se não bastasse, ambos se apaixonam pela mesma mulher: Flora.

Mas ao contrário da personalidade maçante dos irmãos, Flora se mostra madura e com um caráter irretocável, o que denota o apreço de Machado ao criar mulheres incomparavelmente superiores aos homens de suas histórias. Os casais Bentinho e Capitu (Dom Casmurro) e Helena e Estácio (Helena) são apenas dois exemplos do quanto o autor se empenhava na construção de suas personagens femininas e do quanto elas se sobressaem aos personagens masculinos.

Fonte de disputa entre os gêmeos, a indecisão de Flora em relação aos seus sentimentos também pode ser interpretada como um Brasil dividido entre monarquistas e republicanos. Mais um toque de gênio do nosso Bruxo do Cosme Velho.

Esaú e Jacó é uma obra mais monótona se comparada às outras do autor, mas sua importância reside no testemunho político. A análise psicológica dos personagens também está presente, como não poderia deixar de ser, assim como o narrador que participa da história interagindo com o leitor, o que faz com que os narradores de Machado sejam uns dos melhores de toda a literatura.

Nesse livro também somos apresentados ao Conselheiro José da Costa Mendes Aires, personagem que acabou por ganhar um romance só seu, Memorial de Aires, o último publicado por Machado. A história dos gêmeos, inclusive, é retirada dos diários do Conselheiro, sendo que ele é, de fato, o narrador da história, e não Machado.

Inteiramente dedicado aos antagonismos, talvez esse seja o livro do mestre brasileiro que melhor traduz o Brasil de hoje: dividido e com as pessoas mais interessadas em defender ideologias de forma cega a refletir sobre os assuntos seriamente, abrindo mão de conceitos arraigados em prol de um bem maior para o país.

Esse é um livro muito mais focado em política, portanto, se você pretende ler a obra, tenha isso em mente para não se decepcionar. E como diria o próprio narrador machadiano, caro leitor, não julgue o livro pelo que você espera que ele seja, julgue-o pelo que ele é. E divirta-se.

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