Resenhas

Nós

Publicado em 1924, nos EUA, depois de ser proibido no país de origem do autor do autor Ievguêni Zamiátin, a então União Soviética, Nós é a distopia que inspirou outras grandes obras do gênero como 1984, de George Orwell, e Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley. A obra só foi publicada na Rússia em 1988, mais de 50 anos após a morte de Zamiátin.

Ambientada num futuro onde o planeta é controlado por um único governo, chamado Estado Único, a narrativa apresenta uma sociedade sem a mínima noção de individualidade e privacidade, na qual a população cumpre atividades preestabelecidas e têm horário para absolutamente tudo, desde o trabalho até o sexo.

Nesse lugar, as pessoas são conhecidas por uma combinação entre letras e números, e quem nos conta a história é um engenheiro chamado de D-503. Além de ser o responsável por construir a nave que irá levar a proposta do Estado Único para outros planetas, ele também fica incumbido de escrever um relato sobre como a vida é perfeita sob as ordens do atual governo.

Nosso protagonista é um homem muito bem adequado ao sistema, respeita seus horários, não questiona e acredita piamente que a vida no passado era terrível, afinal, ele não vê sentido no conceito de liberdade e muito menos nas relações de afeto. Na verdade, ele só conhece esses conceitos através dos livros, já que isso não existe no Estado Único. E D-503 nem gostaria que existisse.

Mas é claro que tudo muda quando ele conhece uma mulher tão misteriosa e, pasmem, tão livre. Ela é I-330 e o protagonista logo se vê tomado por uma paixão avassaladora. Naturalmente isso o confunde pois ele não sabe identificar esse sentimento. Como poderia?

“Mas eu estava perturbado por aquele sorriso. Aquela gota de tinta havia turvado minha solução transparente. De tal maneira que mais tarde, na construção da ‘Integral’, de modo algum pude me concentrar, inclusive cometi um erro nos cálculos, coisa que nunca me acontecera acontecera antes.”

A partir de então a narrativa clara e direta, quase analítica, dá lugar a frases entrecortadas, pensamentos soltos e um texto que exprime perfeitamente o desnorteamento do personagem. Zamiátin foi perfeito em fazer com que o turbilhão mental de D-503 transpusesse as páginas e acertasse em cheio o leitor que, como eu, não consegue mais desgrudar os olhos das páginas.

E mesmo quando o texto torna-se tão passional, a escrita continua fluida e agradável. E mesmo com uma escrita fluida e agradável, conseguimos sentir o clima sufocante daquele lugar. Quem mais poderia juntar tantas características opostas de uma forma bastante agradável senão um mestre da escrita? Não é à toa que outros mestres (como disse no início dessa resenha) foram inspirados por Zamiátin.

Li essa história através da edição da Aleph, que além de um projeto gráfico incrível (capa dura e cortes coloridos), também teve o cuidado de mudar a fonte do texto quando o protagonista atinge seu ponto de virada. As fontes são muito parecidas entre si, o que pode passar despercebido no consciente do leitor mas com certeza tem um efeito no inconsciente.

O livro também traz dois textos extras: uma resenha escrita por George Orwell e uma carta de Ievguêni Zamiátin pedindo a Stálin autorização para sair do país, já que ali ele não consegue trabalhar. Já a tradução fica a cargo de Gabriela Soares.

Nós é um livro interessante e bem escrito, capaz de nos chocar com as descrições de rituais cruéis daquela sociedade e ao mesmo tempo nos trazer a esperança de que o ser humano jamais se deixará dominar completamente. Ou deixará? Só lendo pra saber ( e eu acho que você deveria fazer isso).

Título original: Мы
Autor: Ievguêni Zamiátin
Páginas: 344
Editora: Aleph
Nota: 5/5

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