Sagas e coleções

Desventuras em Série

Logo no primeiro volume de Desventuras em Série o autor avisa: “Há muitos tipos de livros no mundo, o que faz sentido, porque há muitos e muitos tipos de pessoas, e os gostos são diferentes. Por exemplo, pessoas que detestam histórias em que acontecem coisas horríveis a criancinhas deveriam fechar este livro imediatamente”. Portanto, saiba que “desventuras” não é apenas uma palavra que está no título, mas é o que realmente acontece com os irmãos Baudelaire em todos os 13 volumes dessa história.
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No primeiro livro, Mau Começo, somos apresentados a três crianças, Violet, Klaus e Sunny Baudelaire, no momento em que elas recebem a notícia da morte de seus pais em um incêndio que também destruiu a casa onde moravam. Diante do trágico acontecimento, os três serão obrigados a morar com algum parente que nunca viram na vida, até que Violet, a mais velha, atinja a maioridade. E o tutor escolhido é o famigerado Conde Olaf, um homem sem nenhum escrúpulo, que será capaz das maiores atrocidades para roubar a fortuna dos Baudelaire.
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Pesado? Sim, mas o autor consegue trazer leveza e humor suficientes para transformar essa premissa em uma história infantil de muita qualidade.
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Com personalidades bem definidas, cada um dos Baudelaire têm aptidões específicas que os ajudarão ao longo de todos os livros. Violet, é uma das melhores inventoras do seu tempo, portanto sempre que estão em perigo ela arruma uma forma de criar algo para salvá-los. Klaus, o irmão do meio, é um leitor assíduo que será responsável por descobrir, nos livros, a solução dos problemas que surgirem. A caçula, Sunny, não passa de um bebê que sequer desenvolveu a fala, mas balbucia palavras as quais seus irmãos sempre entendem e traduzem tanto para os outros personagens quanto para o leitor. A especialidade de Sunny é morder, desde móveis a pessoas, e acredite, isso irá ajudá-los inúmeras vezes durante suas desventuras.
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O autor, Lemony Snicket, na verdade é um heterônimo de Daniel Handler. Como vocês devem saber, um heterônimo é um autor fictício que possui personalidade própria, o que não se confunde com pseudônimo, que é apenas um nome fictício para ocultar a verdadeira identidade do autor. Um dos pontos altos do texto de Desventuras é o fato de Snicket participar da narrativa, não como parte efetiva da trama, mas influenciando no texto e fazendo algumas observações. Além disso fica claro desde o início que, em algum momento, sua história se encontra com a dos Baudelaire.
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Outra característica incrível da série é que ela é carregada de referências históricas, culturais e, é claro, literárias. O próprio sobrenome dos irmãos é uma homenagem à Charles Baudelaire, precursor do simbolismo na França e fundador da poesia moderna. Tais referências não são jogadas no texto de qualquer forma mas são explicadas e funcionam como uma maneira de passar conhecimento aos pequenos leitores, a quem a obra é destinada. E essa capacidade de entreter e ensinar na mesma medida é realmente incrível.
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Mas, apesar de as crianças serem o público alvo, o enredo de Desventuras em Série apresenta conflitos mais complexos do que costumamos encontrar na literatura infantil. Além da tragédia inicial, onde os protagonistas ficam órfãos, eles também sofrem outras perdas consideráveis no decorrer dos livros. Até a construção do vilão mostra um requinte, visto que, mesmo se apresentando como alguém extremamente asqueroso e realmente perigoso, ele consegue, de alguma forma, nos cativar.
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Ambição, egoísmo e a maldade humana são temas recorrentes, todavia, acredite, também há espaço para muito humor e ironia na história dos Baudelaire. Não preciso lembrar que se trata de uma literatura infantil e por isso o humor é feito para os pequenos, o que não significa que os adultos não darão boas risadas. Algumas ironias, inclusive, passarão despercebidas pelas crianças, o que demonstra que o autor também se preocupou em proporcionar bons momentos aos pais ou pessoas mais maduras que viessem a ler sua história.
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Os recursos de escrita utilizados são interessantes e incomuns, acabando por captar a atenção do leitor. Por exemplo, em determinada altura de suas desventuras, os três irmãos chegam em um hotel onde as palavras da fachada são espelhadas na água de um lago, e a partir daí trechos da narrativa são escritas ao contrário, obrigando o leitor a efetuar a leitura através do reflexo de um espelho. Métodos diferentes assim são utilizados durante toda a narrativa.
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Os 13 livros de Desventuras em Série são, na ordem: Mau Começo (1999), A Sala dos Répteis (1999), O Lago das Sanguessugas (2000), Serraria Baixo-Astral (2000), Inferno no Colégio Interno (2000), O Elevador Ersatz (2001), A Cidade Sinistra dos Corvos (2001), O Hospital Hostil (2001), O Espetáculo Carnívoro (2002), O Escorregador de Gelo (2003), A Gruta Gorgônea (2004), O Penúltimo Perigo (2005) e O Fim (2006).
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Os primeiros volumes seguem uma fórmula preestabelecida mas a partir de certo momento ela vai sendo deixada de lado e passamos a acompanhar desdobramentos diferentes da trajetória dos Baudelaire.
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A edição da Seguinte traz ilustrações e tem um formato menor, estilo livro de bolso, sendo vendida num box com todos os volumes da série. Dois tradutores trabalharam em Desventuras, sendo Carlos Sussekind o responsável pelo texto do primeiro ao quinto volumes, e Ricardo Gouveia do sexto ao último. Ambos mantêm o mesmo ritmo e estilo, o que faz com que a troca de tradutor seja praticamente imperceptível.
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Queria ter conhecido essa história quando criança, mas ler já na idade adulta não deixou de ser uma experiência inesquecível. Com certeza vou guardar esses livros com muito carinho esperando ansiosamente a primeira oportunidade de apresentá-los aos filhos que um dia terei. Se você já tem seus pequenos, siga meu conselho e leia Desventuras em Série para eles. Se assim como eu, ainda não é mamãe ou papai, leia para você mesmo. Dê uma oportunidade à esse que, merecidamente, já é considerado um clássico da literatura infantil.
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Sobre o final

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Optei por falar do final separadamente porque algumas pessoas não gostam de saber absolutamente nada sobre os desfechos dos livros que pretendem ler. Minha intenção é apenas dividir com vocês minhas impressões sobre a solução apresentada para as desventuras dos Baudelaire, portanto não darei spoiler. De qualquer forma, minha opinião pode trazer uma ideia do que acontece, ou se pelo menos é algo bom ou ruim, então sintam-se a vontade para parar por aqui também, se quiserem.

Enfim, muitas pessoas não gostam do final de Desventuras por achar amargo demais para uma criança. Contudo, o autor avisa durante todos os 13 livros que seria assim. Se o leitor não acredita, não é culpa da obra.

O que ocorre é que somos surpreendidos por uma série que se apresenta meio sem grandes ambições mas que, no fim, é um soco no estômago. E terminamos não só de coração partido, mas sem muitas respostas, portanto um ponto fica claro: a mensagem final não é coisa de criança.

Como disse durante o texto, é nítida a preocupação de Handler em introduzir elementos para transformar a leitura de seus livros interessante também para os adultos e um final tão profundo só comprova isso. Nele são questionados valores que foram tidos como certos durante toda a trama, vilões e heróis se misturam e o leitor atento percebe que, por mais que tudo nos dê a sensação de certeza dos fatos, nosso julgamento ainda pode ser equivocado.

Desventuras em Série é uma saga divertida e corajosa, que para as crianças é sobre órfãos e a maldade de um vilão maluco; mas para os adultos é sobre os erros que estamos dispostos a perdoar ou até mesmo ignorar para conservar casta a imagem da pessoa amada que se foi.

Se você já leu, sabe que aquela última palavra é o que define a obra inteira. E isso é genial. Se você não leu, por favor, leia.

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