Resenhas

Assombro

Dezoito escritores atendem ao chamado de um anúncio para que participem de um retiro. A intenção é que o isolamento auxilie no processo criativo dessas pessoas para que eles escrevam a obra-prima de suas carreiras. Assim, eles são levados para um lugar desconhecido onde permanecerão por três meses, independentemente do que aconteça.

Chuck Palahniuk, autor dessa e de outras obras muito conhecidas, como Clube da Luta, por exemplo, é conhecido por sua ousadia narrativa. Seus textos são cruéis e expõem o lado mais bizarro do ser humano. Em Assombro, além disso também sobra violência e momentos que chegam a enojar o leitor.

A trama se intercala entre dois tipos narrativos, sendo o primeiro deles um romance ambientado no presente, o qual mostra a trajetória daqueles escritores no local onde estão confinados. Já no segundo tipo temos os contos narrados pelos personagens, os quais explicam os motivos de seus apelidos, já que eles não são chamados por nomes próprios, o que é inclusive um artifício bastante interessante usado por Palahniuk.

A exceção fica por conta do sr. Whittier e da sra. Clark, os organizadores do evento que, além de serem identificados pelos nomes, são os únicos responsáveis por mais de um conto no decorrer da obra.

Tanto a narrativa no presente quanto o testemunho do passado de cada um através dos contos são grotescos e ultrapassam o limite do extraordinário. Chuck Palahniuk faz justiça à sua fama de transgressor pois é exatamente isso o que encontramos nesse livro.

Logo de cara o leitor já é impactado pelo conto de São Sem Pança, algo que mistura desvios sexuais, piscinas e tripas. Você também encontra essa história na internet com o  título de Guts (Tripas). Num outro momento se discute pedofilia da forma mais traumática possível, tornando difícil a leitura até para os interlocutores menos sensíveis. Canibalismo, aborto, psicopatias, tudo é tratado nessa obra arrebatadora que é Assombro. Aliás, o livro não poderia receber um título mais apropriado…

“Era meu maior medo no mundo: minha irmã virgem achando que tá apenas engordando, até que dá à luz um bebê retardado de duas cabeças. E as duas são iguais à minha. Eu, o pai e o tio.” – Pág. 25

A deterioração do ser humano, partindo da mente e com consequências no corpo, é o que guia esse romance de histórias. Todos os personagens têm um passado atormentado por motivos que vamos descobrindo no decorrer da narrativa, mas a forma com que eles vão se perdendo na loucura é assustadora.

Chuck traça uma imagem extremamente vívida daquilo que descreve, desde cheiros e gostos até o declínio da mente de cada um. A atmosfera sufocante dessa história atinge ao leitor de forma brutal, sendo que em muitos momentos talvez você precise fechar o livro para conseguir respirar, sair daquele retiro assustador e recobrar a sua própria sanidade.

Durante seu texto, o autor faz algumas menções a autores e obras importantes da literatura, como Ágatha Christie e Decamerão. Uma análise mais profunda de Assombro demonstra que todos esses clássicos serviram de inspiração para Palahniuk, por exemplo, o fato de pessoas estarem presas em um local até que algo se resolva na trama, como ocorre em um dos livros da Rainha do Crime.

Até a história que permeia a criação de Frankenstein – uma reunião de amigos numa noite de tempestade que se desafiam a escrever a melhor história de terror – foi transformada num retiro de autores para criarem as obras-primas de suas vidas.

Apesar de tudo o que já foi dito, Assombro não deve ser classificado como um livro de terror, tanto porque o assustador dessa história não tem ligação com o sobrenatural ou muito menos há alguém ameaçando aquelas pessoas, mas elas próprias são a ameaça a si mesmas.

“- O que vou falar talvez pegue muito mal – diz Camarada Escárnia. Os dedos dela soltam a pele, e aquela metade do rosto volta a ser frouxa e a ter rugas que fazem sombra. – Eu via fotos de gente assim atrás do arame farpado nos campos de extermínio – diz ela. – Esqueletos vivos. E sempre pensei: ‘Essa gente deve ficar bem em qualquer roupa.’ ” – Pág. 246

O que o escritor faz é denominado tecnicamente de ficção transgressiva, ou seja, em linhas gerais é aquela que preza pelo bizarro e mórbido através de uma linguagem crua, impactante, sem oferecer nenhum tipo de consolo ao leitor. A ideia principal desse tipo de literatura se baseia no choque, e definitivamente Palahniuk é mestre nisso.

Mas engana-se que a intenção do autor seja apenas entregar um livro indigesto, pois as críticas contidas nessa obra também têm sua importância. A espetacularização da dor, a busca insana pela fama e o esforço por uma vida de aparências, são apenas alguns exemplos do que é discutido aqui.

Assombro propõe reflexões até sobre o uso do vitimismo para conseguir vantagens, mesmo que a interpretação de “vítima”, no caso, seja algo premeditado para um determinado fim. Ao infligirem castigos físicos a si mesmos, os personagens criam a imagem certeira para despertar a compaixão das pessoas e transformá-los nos protagonistas da história.

Aliás, essa disputa pelo protagonismo, dentro e fora do retiro, é outro ingrediente poderoso do romance de Chuck Palahniuk, é algo que podemos identificar na vida real. Às vezes até em nossas próprias experiências…

Ainda sobre os castigos físicos, e sob uma análise mais psicológica, a intenção do autor talvez tenha sido a de demonstrar os perigos da autossabotagem. O objetivo inicial dos personagens é a fama através do trabalho. A partir do momento que esse intento se mostra árduo, eles descobrem uma forma aparentemente mais fácil de alcançar o sucesso, portanto se autossabotam buscando um atalho que, na verdade, os deixam cada vez mais longe de seus objetivos. Você já fez isso?

Assombro mostra o quanto Chuck Palahniuk tem a capacidade de mexer com a emoção do leitor, impressionando com suas cenas grotescas e te fazendo refletir a partir da loucura de seus personagens. É um livro incômodo, sim, mas é, na mesma medida, genial.

Título original: Haunted
Autor: Chuck Palahniuk
Páginas: 512
Editora: LeYa
Nota: 5/5

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