Vulgo Grace
Em 1843, Grace Marks foi condenada à morte por ter auxiliado no assassinato de seu patrão, Thomas Kinnear, e da governanta da casa onde trabalhava, Nancy Montgomery. Porém, sua pena foi comutada em prisão perpétua e ela viveu anos de sua vida entre a penitenciária comum e o manicômio.
Até hoje há os que duvidam que Grace realmente tenha participado do crime e em 1996 Margaret Atwood resolveu transformar essa história em um romance chamado Alias Grace – ou Vulgo Grace, no português -, o qual foi adaptado para uma série da Netflix em 2017. Foi esse livro que escolhi para cumprir o primeiro tema do desafio Mais Uma Página, assim como é o livro de janeiro do meu desafio de 12 livros para 2020.
A narrativa de Atwood segue, ao máximo, a história real mas acaba tendo que preencher as lacunas com sua criatividade. E ela faz isso muito bem. No início da trama a protagonista já está presa há alguns anos, mas um grupo que acredita em sua inocência contrata um psiquiatra, Simon Jordan, para tentar fazê-la se lembrar de detalhes do crime que possam livrá-la da prisão.
Assim, é a própria Grace que narra sua história, e como a própria salienta, ela pode dar a versão que quiser. Inclusive pode mentir, portanto, leitor, fique atento. A moça começa a contar sua vida desde quando ela vivia com a família na Irlanda, fala sobre os maus tratos do pai, narra a vinda para o Canadá, passa pela morte de pessoas muito queridas até chegar no dia do crime.
“Foi difícil começar a falar. Eu não tinha falado muito nos últimos quinze anos, não tinha realmente falado do jeito com que eu costumava falar com Mary Whitney, com Jeremias, o mascate, e com Jamie Walsh também, antes de se tornar tão traiçoeiro comigo; de certa forma eu desaprendera a conversar.” – Pág. 80
Apesar de lembrar detalhes de toda a sua vida, algo que chega até a deixar a narrativa mais lenta do que gostaríamos em determinados momentos, a personagem garante que não se lembra de absolutamente nada do crime. Ocorre que no decorrer da investigação até seu julgamento, ela deu três versões diferentes sobre o crime, enquanto seu comparsa, o também empregado da casa, James McDermott, deu duas versões.
A obra de Atwood traz trechos das confissões reais dos condenados, o que prende a atenção do leitor o deixando ainda mais curioso diante dos absurdos que Grace afirma. Por exemplo, ela sugere a McDermott que não mate Nancy no quarto para que ela não tenha que limpar o sangue de lá.
Esse tipo de comportamento vai de encontro a personalidade que a protagonista mostra durante a conversa com Simon: uma moça bela, prendada, tranquila, submissa e humilde. Tudo o que representava a imagem da “mulher ideal” de sua época, meados do século XIX. Ela, inclusive, escapou da morte graças a imagem que criou. Na época, o Canadá estava tentando se reafirmar como um país civilizado, e não soaria bem enforcar uma mulher assim.
Mas enquanto a autora acertou em cheio na construção da protagonista e na forma de narrar essa história, houve um pequeno detalhe que me incomodou, que foi a construção do médico. Simon é muito bem desenvolvido até o segundo terço da narrativa, mas a partir do momento em que Grace termina sua história – ou pelo menos a parte que ela diz se lembrar -, ele perde sua serventia e Atwood praticamente dá um jeito de se livrar do personagem, o que me soou abrupto e até um tanto preguiçoso.
“Ele está começando a detestar a gratidão das mulheres. É como ser bajulado por coelhos ou ser coberto de xarope: você não consegue se livrar. Isso o atrasa e o coloca em desvantagem. Todas as vezes que alguma mulher demonstra gratidão para com ele, sente como se tomasse um banho frio. A gratidão delas não é real; o que elas realmente querem dizer é que ele deveria ser grato a elas. Secretamente elas o desprezam.” – Pág. 398
Tirando isso, a obra é muito bem pensada e contém até algumas analogias interessantes, como fato de Grace estar costurando uma colcha de retalhos enquanto junta os “retalhos” de sua história para o psiquiatra, e o desenvolvimento do caráter de Grace, discreto mas perceptivo, a partir de três mulheres muito importantes em sua vida.
Se você espera respostas através da leitura de Vulgo Grace, saiba que esse livro cria mais perguntas do que as responde. Não é uma obra que chega a uma conclusão, ficando isso totalmente a cargo do leitor. Atwood constrói uma personagem incrivelmente controversa. Nós queremos acreditar em Grace mas aquele dúvida sempre está lá no fundo, incomodando, nos fazendo enxergar pequenos deslizes que ela comete ao deixar escapar vislumbres de sua verdadeira personalidade. Ou será que imaginamos esses vislumbres e, na verdade, estamos julgando Grace tão injustamente quanto seus contemporâneos fizeram?
Eu, particularmente, acredito na culpa. Mas não descarto a possibilidade de estar errada e ela ser, de fato, inocente.
Caso você também queira formar uma opinião sobre essa história, e ela é tão bem construída que já vi leitor com as mais variadas conclusões, terá que ler Vulgo Grace, sempre atento a qualquer detalhe da narrativa. Particularmente, acho que você deveria fazer isso. Por mais que as tão sonhadas respostas não venham, você terá acesso a uma obra muito bem escrita e que vai te proporcionar aquela ansiedade que todo leitor adora, a de não conseguir largar o livro até que este esteja finalizado.