Resenhas

Geek Love

Logo no início da belíssima edição da Darkside, Katherine Dunn sente a necessidade de explicar a aplicação do termo “geek” em sua obra, já que hoje o utilizamos com um sentido totalmente diferente.

Em 1989, quando o livro foi publicado, tal palavra era usada para “descrever um defeito de personalidade ou uma deficiência social”, mas Katherine a coloca, de fato, como a imitação onomatopeica do derradeiro som que a galinha faz quando seu pescoço é partido a mordidas num freak show. Assim, temos um prelúdio do que virá a seguir no texto: um apanhado de fatos e personagens bizarros, numa narrativa transgressiva e bastante incômoda em inúmeras partes.

Crystal Lil era uma artista do circo de Al. Eles se casaram e, buscando uma forma de alavancar seu empreendimento, decidiram produzir seus próprios geeks. Lil, então, usava vários tipos de drogas e de substâncias químicas durante a gravidez para que as crianças nascessem com anomalias que seriam usadas para montar os espetáculos do Fabuloso Circo Binewski. O resultado bem-sucedido dessas experiências foram Arturo, Electra, Iphigenia, Fortunato e Olympia, a narradora anã, corcunda, albina e careca dessa história.

Geek Love se passa em dois momentos. No passado Oly mostra a formação daquela família, o nascimento e as particularidades de cada membros e a forma como a história dos Binewski se desenvolveu. Já no presente Oly acompanha sua filha – que não sabe da maternidade – e busca ajudá-la contra alguém que quer fazer com que a garota deixe de ser “especial”.

A trama de Katherine Dunn enseja algumas reflexões acerca da forma como enxergamos a normalidade. Ela vai além da discussão sobre o preconceito, demonstrando que uma sociedade que resiste ao diferente é tão nociva quanto aquela que aceita qualquer coisa como normal. Os excessos são perigosos para a humanidade, e vemos isso claramente a partir da trajetória dos Binewski.

Durante o texto, a família mergulha cada vez mais no prazer de ser diferente, perdendo toda a noção do que é razoável e passando a representar uma ameaça entre si, afinal quanto mais diferentes eles forem, mais especiais serão considerados. O que eles não percebem é que as pessoas que aplaudem suas anormalidades estão preocupadas ou apenas com o próprio entretenimento, ou buscam provar a si mesmas sua bondade e empatia por aceitar algo tão fora do comum.

Arturo, Electra, Iphigenia e Olympia acreditam que são especiais pois é isso o que todos falam para eles a todo momento, mas na verdade são apenas instrumentos, peças de um show, criaturas expostas como animais no zoológico para que os espectadores, tão complacentes, voltem para suas casas com a satisfação de não estarem no lugar de nenhuma daquelas “anomalias”.

Apenas Fortunato parece enxergar a realidade, tanto que ele é o personagem com as camadas mais dramáticas da trama. O mais novo dos Binewski representa, de alguma forma, o olhar incrédulo do leitor diante de tantos despropósitos.

A intenção de Katherine Dunn de propor uma discussão sobre normalidade é extremamente válida e necessária, contudo seu erro foi questionar o diferente a partir da aceitação do absurdo. São duas coisas obviamente conflitantes e que não ocupam o mesmo espaço.

Outra questão imposta pela narrativa é trazida à tona através do chamado “arturismo”, um culto que passa a surgir acerca de Arturo, onde as pessoas passam a enxergá-lo como um ideal a ser alcançado e não medem esforços para se assemelharem ao seu ídolo. Não há juízo de valor, não há análise dos fatos. No arturismo só há a repetição cega dos conceitos lançados pelo líder, o que pode ser uma crítica da autora sobre a manipulação das massas feita por lideranças políticas e religiosas.

A principal mensagem da obra consiste na análise de como nossas experiências ajudam a moldar nosso caráter e constroem o sucesso ou a decadência total. A narrativa também pode remeter ao adoecimento de uma sociedade que, de tão acostumada ao absurdo, perde totalmente a capacidade de enxergar seus vícios, passando até a celebrá-los.

No final das contas, Geek Love é um livro divertido e incômodo, o qual proporciona discussões muito interessantes e distrai o leitor ao ponto dele não pensar em outra coisa até saber o final. Entretanto também é um livro equivocado em alguns pontos, como na narrativa desinteressante em algumas partes, como se a autora não soubesse dar forma à grandiosidade da história que imaginou. A mim pareceu o famoso “passo maior que as pernas”.

Mesmo assim recomendo a leitura pois esse é, em sua maior parte, um livro capaz de fazer com que o leitor entenda o diferente na mesma proporção que percebe a necessidade de limites.

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