Resenhas

O Conto da Aia

Confesso que tive uma certa dificuldade para escrever sobre esse livro pois, assim como a maioria dos leitores, amei a história, mas meus motivos são um pouco diferentes do que vi por aí.

 
Ambientada num país cujo território pertencia aos EUA, a distopia de Margaret Atwood traz uma sociedade teocrática cujas bases se amparam na justificativa de perpetuar a humanidade, a qual corria sério risco de extinção tendo em vista a queda brusca na taxa de natalidade. Assim, todas as mulheres passaram a desempenhar funções determinadas: as esposas, casadas com os homens do alto escalão, chamados de Comandantes; as martas, responsáveis por cuidar dos serviços domésticos; as tias, responsáveis pela formação das aias; e as aias, meras reprodutoras.
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Como o próprio título deixa claro, a narrativa fica por conta de uma aia, Offred, e nesse detalhe já se encontra o primeiro ponto positivo da trama. Como sabemos, narrativas em primeira pessoa não são confiáveis, visto que conhecemos apenas uma versão da história. Junte isso ao fato de a narradora em questão estar fragilizada em sua condição psicológica. Apesar disso, a autora nos passa tanta verdade em seu texto que não desconfiamos, em momento algum, dos absurdos que nos são contados, mesmo quando a própria Offred confessa uma certa confusão com relação às suas lembranças.

Outro acerto de Atwood foi ambientar sua trama pouco tempo depois dos fatos que originaram essa nova ordem social. Normalmente, nas distopias, somos apresentados a um mundo totalmente diferente daquele que conhecemos, onde décadas já se passaram e os personagens só têm informações sobre o passado através de relatos antigos. Nesse livro não. Aqui, como se passaram apenas 3 ou 4 anos da criação da nova ordem, todos os personagens viveram numa sociedade “normal” e se lembram, principalmente as mulheres, de como é o sentimento de liberdade que foi tomado delas.

Através do fluxo de consciência, Offred vai nos mostrando retalhos da sua própria história, sua vida anterior, seu marido e sua filha, os quais ela não sabe sequer se estão vivos ou mortos, seu treinamento como aia e como é sua rotina atual. Com certeza, um dos relatos mais impactantes é sobre a forma que o ato sexual para tentar engravidá-la acontece, na presença de seu Comandante, obviamente, e de sua esposa.

Até aí minha opinião converge com a dos outros leitores que vi por aí, contudo existem alguns pontos que me despertaram uma reflexão um pouco diferente dos demais.

É o caso da função da religião nessa nova sociedade, por exemplo. Uma sociedade teocrática, de forma bem rasa, só pra situar o leitor, é aquela submetida às determinações de alguma religião. Mas não acho justo culpar qualquer religião, ou o Cristianismo, de forma geral, pelas atrocidades cometidas durante o texto de O Conto da Aia. Os governantes ali se baseiam, sim, na Bíblia, contudo eles apenas retiram as partes que atendem aos seus ideais. Não é a religião que induz àquelas crueldades, são os homens que fazem interpretações conforme seus interesses. Como sempre.

Outro ponto que divirjo um pouco das demais opiniões que vi, diz respeito ao motivo pelo qual gostei do livro. É difícil explicar, mas vamos lá. Para mim, a história de Atwood é uma excelente distopia. E ponto.

Lógico que, como qualquer obra bem construída, ela serve de alerta para pensarmos sobre nossas crenças, ideologias e sobre os rumos de nossa sociedade. Contudo, não acho razoável tanta preocupação em torno de algo que pode vir a acontecer, enquanto coisas tão terríveis quanto as narradas na obra em questão já acontecem em várias partes do mundo.

No Afeganistão, por exemplo, as mulheres são proibidas de exercerem várias profissões, inclusive cargos políticos. Além disso, se por um lado não há pena para o estupro no país, por outro são comuns penas cruéis para elas, como o apedrejamento. O Irã se aproxima ainda mais da sociedade criada por Margaret Atwood, visto que lá a constituição se baseia nos códigos morais do islamismo, o qual prevê tratamentos muito diferentes para homens e mulheres.

Há países que, hoje, praticamente institucionalizaram o estupro, como é o caso da Coreia do Norte e da República Democrática do Congo. Cerca de 27 países africanos admitem a prática da mutilação genital feminina, o que também acontece em vários locais da Ásia e do Oriente Médio.

Enfim, não faltam exemplos de abusos cometidos contra as mulheres no mundo de hoje, e, pelo menos para mim, fica claro que não se sustentam os argumentos de que uma ideologia política mais conservadora seria a responsável pelo retrocesso nos nossos direitos. Por isso, não vejo O Conto do Aia como um alerta de para onde nossa sociedade caminha, e nesse sentido o livro não me pegou. Mas encarando apenas como uma distopia a qual podemos tirar reflexões importantes, independente de usá-lo como panfleto para essa ou aquela ideologia, achei uma obra excelente.

No mais, vale citar que a história, escrita em 1985, ganhou uma edição muito boa da Rocco. Não há textos auxiliares nem notas sobre autora e edição, o que senti falta, ainda mais se tratando de um livro tão celebrado. Apesar disso, a escolha da arte da capa e das páginas amareladas que facilitam a leitura não podem deixar de ser citadas como pontos favoráveis.

Foi minha primeira leitura finalizada de 2018, o que me deixou feliz por ter começado tão bem, com uma obra que testou minha capacidade de julgar um assunto independente do bombardeio de opiniões que ouvi anteriormente sobre ele.

Autora: Margaret Atwood
Editora: Rocco
Nota: 5/5

4 Comentários

  • Michelly Santos

    Oi Dora!
    Eu descobri esse livro no 1001 Livros para Ler Antes de Morrer, e qd lançou essa capa nova fiquei ainda mais interessada! hehe…
    Das outras distopias que vc citou, já li 1984 (que, inclusive, é um dos meus livros preferidos). Mas tb quero muito ler A Máquina do Tempo, além de outros livros do H. G. Wells, que nunca li nada!
    Ainda não li Vulgo, Grace, mas tá na lista!
    Beijos!

  • Dora Sales

    Também amei O conto da aia <3
    Descobri esse livro em uma revista do Mundo Estranho sobre livros, o encontrei na parte de livros distópicos e logo fiquei super interessada nele e em outros títulos (como 1984, A máquina do tempo, etc).
    Gostei tanto deste que fui atrás de outro livro da autora: "Vulgo Grace". Achei muito bom também e recomendo caso ainda não tenha lido =D
    Ótima resenha

    Beijão
    Toca da Lebre

  • Ozzy Bertinelli

    Ola,
    'O Conto da Aia' está na minha lista de livros para ler em 2018, estou bem curioso para ler esse livro, estou ouvindo muito sobre ele nos últimos tempos, em paralelo ao livro também vou assistir a série, que também está sendo MUITO comentada e levando todos os prêmios em que é indicada.
    É muito bom começar o ano com o pé direito assim, já te deixa animado e esperançoso pelo que está por vir o/
    xoxo

    Planeta 94

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