Emma
Quando Jane Austen escreveu Emma, tinha em mente construir uma protagonista a qual apenas ela gostasse. Infelizmente – ou felizmente -, preciso dizer que a inglesa falhou miseravelmente nessa missão pois muitos leitores mundo afora simpatizam com a garota bonita, inteligente e rica que protagoniza e empresta seu nome à essa história, e eu sou uma dessas pessoas.
A obra é uma comédia de costumes publicada em 1815 e, assim como as outras obras da autora, foca na sociedade provinciana do período georgiano. Esse é, inclusive, um equivoco comum quando falamos em Jane Austen e aqui vale abrir um parênteses para esclarecer que Jane Austen fez parte da Era Georgiana, e não Vitoriana, como muitos afirmam.
Logo na primeira página, Emma é apresentada como uma garota mimada, sendo que pouco mais a frente a própria personagem admite ter algumas “manias”, mostrando que não é tão alheia assim aos seus defeitos. Também no início, a narrativa apresenta o sr. Woodhouse, pai da personagem-título, como um homem cheio de qualidades, o que vai de encontro ao que o leitor realmente observa logo em seu primeiro diálogo.
Isso já é o suficiente para deixar o leitor alerta às entrelinhas dessa história pois muitas vezes o narrador é desmentido em algo que falou no próprio decorrer da narrativa. Estar atento à interação dos personagens é essencial para que você compreenda a obra.
Emma, por sua vez, é sim uma garota fútil mas é também cheia de boas intenções. Ela acredita que colaborou para a união bem-sucedida de sua ex-governanta, o que a convence de que pode fazer o bem para as pessoas arrumando bons casamentos para elas.
“- E você esqueceu um motivo de alegria para mim – disse Emma. – Um motivo muito importante, uma vez que eu mesma fui a responsável por esse casamento. Eu planejei esse momento, como bem sabe, há quatro ano. Vê-lo agora realizado, e todos vendo meu acerto, mesmo quando muitas pessoas diziam que o sr. Weston não se casaria novamente, por certo é uma satisfação pessoal.
O sr. Knightley inclinou a cabeça em reverência para ela. Seu pai carinhosamente respondeu:
– Ah! Minha querida, desejo que você não tente mais casar ninguém, nem faça mais previsões, porque tudo que diz sempre acaba acontecendo. Por favor, não tente unir mais ninguém.
– Papai,prometo a você que não farei nada em meu benefício, mas farei em favor de outras pessoas. É o melhor divertimento do mundo!” – Pág. 312
A humanidade dessa personagem foi o que mais me encantou pois é possível concordar e discordar dela em um mesmo parágrafo, o que talvez a torne a criação com mais camadas de Jane Austen.
Outra demonstração da boa forma da autora é Mr. Knightley, um de seus melhores personagens masculinos. Realista e sábio, é cerca de 15 anos mais velho que Emma, a quem aconselha em muitos momentos da trama. Seu irmão é casado com a irmã da protagonista, o que faz com que as duas famílias sejam intimamente ligadas.
George Knightley é o ponto de equilíbrio numa história onde os outros personagens parecem se preocupar apenas com futilidades. O fato de Austen o colocar nessa posição me fez prestar muita atenção ao seu comportamento e às suas falas, pois talvez esses sejam reflexos dos pensamentos da própria autora. E como Jane é uma personalidade que me interessa, sempre me cativa a possibilidade de desvendá-la.
Outros personagens entram no enredo em diferentes momentos, alguns trazendo um tom maior de crítica social, como a afetada Augusta Elton; outros representando um tímido mistério, como a modesta Jane Fairfax. Emma enxerga Jane como uma rival e apesar da moça não demonstrar nenhuma hostilidade com relação à srta. Woodhouse, também não expõe a mínima simpatia.
Através dessas duas personalidades tão diferentes podemos observar algo em comum: o egoísmo da sociedade daquela época. O egoísmo de Augusta é fácil de enxergar, já o de Jane fica nas entrelinhas quando ela se concentra inteiramente em seus dilemas e não se esforça em ser agradável nem para agradar a tia que a acolheu.
Nesse livro, Austen utiliza o velho recurso do forasteiro que chega para conquistar a mocinha despertando o ciúme de muita gente, mas abandona a fórmula quando esse interesse amoroso entre Frank Churchill e Emma toma rumos inesperados. E isso torna a interação entre os dois muito mais interessante pois ela é dividida em dois momentos: o primeiro é de encantamento, nos moldes dos romances tradicionais; o segundo é quase um jogo de sedução que fica ainda mais interessante quando lembramos que quem escreveu a história foi uma mulher do século XIX.
“Quando o anfitrião se afastou, e ela pôde dar atenção novamente ao amigo, observou que Frank Churchill olhava atentamente para o outro lado da sala, para Jane Fairfax.
– Qual é o problema? – disse ela.
Ele começou dizendo:
– Obrigado por chamar minha atenção. Creio que tenho sido muito rude, mas, realmente, a srta. Fairfax fez um penteado tão estranho que não consegui deixar de olhá-lo. Jamais vi algo tão ultrapassado! E os cachos? Devem ser uma criação própria, nunca vi ninguém com um penteado como esse! Acho que vou perguntar se é um penteado irlandês! Devo? Bem, acho que vou até lá e você verá como ela se comporta, se ao menos vai ruborizar-se…
Imediatamente se levantou e Emma pôde observá-lo ao lado de Jane, conversando. Quanto à reação da moça, nada reparou, pois, sem querer, Frank estava parado bem à frente, e ela não conseguiu enxergar absolutamente nada.” – Pág. 445
Apenas para citar uma impressão que tive durante a leitura, Frank me remeteu à Henry Crawford, de Mansfield Park. Os motivos, não posso dizer. Se o fizesse daria spoiler dos dois livros e sei que você não quer isso. Mas leia e volte para me contar se você também viu algumas semelhanças entre os dois.
Por fim, e em meio a toda essa guerra de egos, encontramos Harriet Smith, a moça simples que viu em Emma uma amiga e que só se deu mal por causa disso. Apesar da protagonista dessa obra passar longe de ser uma vilã, muitas vezes ela esquece que vidas humanas não podem ser moldadas ao seu bel prazer.
Harriet tem um papel relevante nos dois primeiros terços da obra, mas me desagrada o fato de que no final ela foi praticamente esquecida. As soluções de Jane Austen com relação à garota são tão aleatórias que denotam um certo descomprometimento com a história da personagem, como se ela tivesse servido apenas de muleta para acentuar os defeitos e as qualidades da personagem principal.
Mas essa é a única reclamação que tenho com relação à penúltima obra da renomada autora inglesa, que escreveu histórias que – como sempre falo – vão muito além de romances açucarados como alguns leitores tendem a pensar.
Preferi não falar dos fatos, mas sim desenvolver essa resenha com foco nos personagens, já que eles são a base dos romances de Jane Austen, uma autora que escreveu sobre a vida, retratando sua sociedade com extrema competência e bom gosto e provando que a boa literatura resiste ao tempo e às mudanças que ele nos impõe.
Apesar da capa e acabamento belíssimos, a edição da Martin Claret traz alguns erros graves de revisão, inclusive tornando difícil o entendimento do texto em algumas partes. Precisei recorrer ao original, em inglês, em alguns momentos, o que é inadmissível, além de bastante incômodo para o leitor.
Apesar disso, a narrativa de Austen faz qualquer esforço valer a pena. Esperemos que a editora, que já foi avisada sobre os erros, os corrija o mais rapidamente possível. No mais, só resta pedir à você, leitor, que dê uma chance à Emma. Ela vai te conquistar.
Título original: Emma
Autora: Jane Austen
Páginas: 311
Editora: Martin Claret
Nota: 4/5
Um comentário
Emerson
Adorei a resenha. Conheci mais da Emma na novela ‘Orgulho e paixão’ da Globo.
Boa semana!
Jovem Jornalista
Fanpage
Instagram
Até mais, Emerson Garcia