Contos Reunidos de Dostoiévski
Distribuído pela Editora 34, Contos Reunidos reúne 32 histórias escritas por Dostoiévski ao longo de 34 anos (de 1846 a 1880). Entre elas o leitor irá encontrar contos, novelas, crônicas, ensaios, entre outras modalidades, todas organizadas por ordem cronológica de publicação e com tradução direta do idioma original.
Através de situações cotidianas, o autor incentiva reflexões sobre a morte, a culpa, as relações humanas, entre outros assuntos que fazem parte de vida de qualquer um. Dostoiévski nos convida, a todo momento, a um mergulho interior a partir da análise de consciência que os personagens fazem de si próprios ao longo das narrativas. Todos os textos dessa coletânea farão, discretamente, algum questionamento sobre sua existência. É o tipo de livro que te coloca pra pensar, você não tem escolha.
Como em toda coletânea, algumas histórias irão te agradar mais que outras, e não poderia ter sido diferente comigo. Entre aquelas que prenderam mais a minha atenção, o primeiro lugar ficou, com certeza, com “A história de Maksim Ivánovitch”, que é, na verdade, uma parte do romance O Adolescente, de 1875. Nela, Dostoiévski nos brinda com uma trama trágica que discute infância, desigualdade social e arrependimento.
“Ajustava as contas com as pessoas de forma arbitrária; pegava o ábaco, punha os óculos:’Fomá, quanto tens a receber?’ – ‘Não recebi nada desde o Natal, Maksim Ivánovitch, então tenho a receber trinta e nove rublos.’ – ‘Ah, quanto dinheiro! É muito para ti; inteiro não vales esse dinheiro todo, isso não é para o teu bico: adeus dez rublos, toma vinte e nove’. E o homem se cala; aliás, ninguém se atreve a soltar um pio, ficam todos de bico calado.” – Pág. 317 (A história de Maksim Ivánovitch)
Também destaco a novela “A dócil”, inspirada por uma tragédia testemunhada pelo autor e pela onda de suicídios de jovens em Petersburgo; e “O crocodilo”, sátira direcionada ao excesso de burocracia das repartições públicas e aos niilistas.
O livro também apresenta duas histórias de Natal que, ao contrário dos modelos clássicos sobre o tema, mostram a realidade nua e crua em um vislumbre da pedofilia e na marginalização dos menos favorecidos.
Mas não é só nas intenções que Dostoiévski acerta a mão, os aspectos técnicos também são bem pensados e magistralmente executados. A estrutura das histórias segue, em sua maioria, uma ordem: há uma tensão inicial entre a consciência e a personalidade do personagem, vindo, em seguida, o desenvolvimento do tema. Essa construção exige a atenção do leitor, portanto não adianta você tentar ler o russo sem se doar 100% a ele.
Entre os inúmeros recursos utilizados nas narrativas presentes em Contos Reunidos, estão desde uma inteligentíssima variação entre prosa e verso, a qual delimita sonho e realidade como ocorre no conto “Como é perigoso entregar-se a sonhos de vaidade”, até a utilização de cartas como em “Romance em nove cartas”, que é integralmente epistolar.
“Acho que o mais inteligente é quem ao menos uma vez por mês chama a si mesmo de imbecil – capacidade de que hoje não se ouve falar! Antes ao menos uma vez por ano o imbecil sabia sobre si mesmo que era imbecil, mas hoje, nem isso. E confundiram tanto a coisa que a gente não distingue o imbecil do inteligente. Isso eles fizeram de propósito.” – Pág. 260-261 (Bobók)
Já algo curioso ocorre em Bobók quando é levantada uma questão sobre narrativas truncadas, em um claro tom de crítica. Levando em consideração que essa história é considerada uma resposta aos apontamentos feitos ao romance Os Demônios, preciso discordar veementemente com a reprimenda a esse estilo de escrita, tão típico de Dostoiévski. Essa foi a característica que mais me encantou quando li o russo pela primeira vez e, afinal, somente um gênio consegue fazer um texto truncado ser também fluido e instigante na mesma proporção.
Os contos integrantes dessa obra também são ricos no que tange à quantidade de referências a outros autores e obras importantíssimas para a literatura. Essas citações incluem títulos do próprio Dostoiévski, mas também encontramos menções à Shakespeare, Gógol e Turguêniev, apenas para citar alguns casos. Nesse ponto, vale frisar o acerto da editora em inserir notas de rodapé muito bem colocadas, as quais prestam esclarecimentos úteis para que o leitor possa aproveitar ao máximo a experiência da leitura.
Além das geniais narrativas do cânone russo, a edição tem ainda uma Apresentação escrita pela tradutora Fátima Bianchi, uma cronologia da vida e obra de Dostoiévski e algumas informações sobre os nove tradutores que tornaram possível a leitura desses textos àqueles que, diferentemente deles, não dominam a língua materna do escritor.
Como toda obra de Dostoiévski, Contos Reunidos é uma joia da literatura que merece ser apreciada por todos os que têm a leitura como sua atividade preferida.
Autor: Fiódor Dostoiévski
Editora: Editora 34
Nota: 4/5
14 Comentários
Flávio
Oi Michelly!
Há muito tempo atrás li um conto (que mais se parecia com uma crônica) sobre um rapaz que se acidenta e aparece no jornal, realizando seu sonho de ser famoso (acho que era algo assim…).
Se não me engano, era de Dostoievski.
Você conhece algo parecido dele?
Muito obrigado desde já.
Grande abraço,
Michelly Santos
Oi Flávio!
Tentei lembrar de algo parecido aqui e não me veio nada… Mas admito que minha memória não é aquela maravilha, então pode ser que exista algo assim do Dostô sim! De qualquer forma, essa edição de Contos Reunidos tem todos os contos dele, caso te interesse, eu super recomendo!
Priih
Oi Michelly, tudo bem?
Ainda não tive a chance de ler esse autor. Sinto que não faz muito meu estilo mas, ao mesmo tempo, sinto grande curiosidade (por tratar-se de um clássico).
Beijos,
Priih
Infinitas Vidas
Michelly Santos
Oi Priih! Td bem sim, espero que com você também!
Dostoiévski é um autor mais complexo, sim, não vou mentir, mas não é esse bicho de sete cabeças que as pessoas pensam também não! Eu costumo dizer que as narrativas dele exigem muito da nossa atenção, mas nos arrebatam na mesma medida. As histórias são interessantes, pode ir sem medo!
Beijos!
Aparecida Luna
Oi Mi! Você coloca sua resenha e acaba por influenciar a vontade de ler. Parabéns! !!
Michelly Santos
Que delícia de comentário, Aparecida!
É justamente isso o que eu pretendo com o site, influenciar a leitura!
Obrigada pelo feedback!
Beijão!
Ana Lícia Morais
Olá!
Minha meta nesse ano é ler algum clássico russo, quero começar com Dostoiévski. Muita gente fala dele e eu só fico cada dia mais curiosa (confesso que não sei por onde começar). Adorei a dica, eu particularmente adoro contos e acho que seria muito interessante ter uma leitura como essa repleta de reflexões.
Ótima resenha 🙂
Beijos!
Michelly Santos
Oi Ana!
Eu comecei os russo por Crime e Castigo do Dostô, e apesar de algumas pessoas falarem que não é uma boa opção para começar, eu discordo totalmente. Lendo um dos principais romances dele eu já entrei nos russos tendo noção do que seriam essas leituras, e amei!
Mas se você gosta de contos e quer começar por algo mais leve (não que esse livro seja super leve, viu?!), uma boa opção é começar por esse Contos Reunidos. 🙂
Beijos!
Silvana Crepaldi
Olá, Michelly.
Eu nunca li nada dele e não sei se começaria por esse pois não sou muito fã de contos. Mas apesar de que você disse que os contos nos faz refletir e talvez por isso eu leia. Meu problema com os contos é que sempre fico querendo saber mais depois hehe.
Prefácio
Michelly Santos
Te entendo perfeitamente, Silvana! Tem contos que são tão bons que a gente gostaria que tivesse mais páginas, né?! Nesse livro, apesar de não ter só contos, algumas histórias deixam esse gostinho de “quero mais”!
Beijos!
Daniella
Tenho vergonha em admitir que ainda não li nada do Dostoievski, mas já coloquei alguns livros na minha lista de desejados, basta apenas comprar.
Beijos e gostei da indicação.
Michelly Santos
Não precisa ter vergonha, Dani! Sempre há tempo para lermos o que quisermos! Basta programar direitinho e mergulhar fundo 🙂
Espero que você tenha uma excelente experiência com o autor!
Beijão!
Felipe Lange
Oi Mi, tudo bem?
Deve ser um livro incrível!
Blog Entrelinhas
Michelly Santos
É sim, Felipe! Super recomendo! 🙂