Canção de Ninar
“Todos veem o que você parece ser, mas poucos sabem o que você realmente é.”
A frase de Maquiavel reflete perfeitamente a história da babá Louise, contratada por Myriam e Paul para cuidar de seus dois filhos quando Myriam decide voltar a trabalhar fora. A frágil Louise parecia ser tudo o que eles precisavam, além de ficar com as crianças ela ainda fazia serviços domésticos que nem eram exigidos – mas também não eram dispensados -, tornando-se um éden na vida do jovem casal que começava a se desentender graças à insatisfação da esposa com o ostracismo que tomou conta de sua vida desde que se tornou mãe.
Mas o futuro mostraria que a babá iria se transformar no pior pesadelo da vida daquele casal ao assassinar brutalmente as duas crianças. O livro de Leïla Slimani começa assim, a partir do fim da história, e a intenção da trama é então acompanhar os caminhos que a levaram até o fatídico dia, onde o que Louise parecia ser dá lugar ao que ela realmente era.
A discussão sobre o surgimento da maldade é algo que acompanha a humanidade há séculos mas permanece sem respostas, e é justamente nessa questão em que se baseia toda a construção da personagem principal.
Muito se fala sobre Canção de Ninar ser um livro sobre o papel da mulher na sociedade, mas para mim, apesar dele também ensejar reflexões sobre esse assunto, é muito mais sobre os mistérios e a fragilidade da mente humana. O dilema da mãe de trabalhar fora ou cuidar dos filhos é apenas o gatilho para a história, a qual irá de fato se desdobrar sobre o que levou a babá a praticar o crime terrível.
Louise tem uma personalidade bastante complexa, a qual vai sendo desvendada aos poucos através da narrativa que intercala dois tempos do passado: um mais recente, mostrando a rotina dela com as crianças; e outro mais remoto, através de flashes da vida pregressa da babá.
Esse último se mostra cruel ao ponto de criar cicatrizes profundas na personagem, que por sua vez não foi capaz de curá-las, o que começa a delinear a fragilidade de sua mente. Sua vida não compensa, portanto Louise tenta se inserir completamente na realidade de seus patrões. Para isso ela precisa ser perfeita pois é assim que se tornará insubstituível.
“- Louise? Que sorte a de vocês de tê-la encontrado. Ela foi como uma segunda mãe pros meus meninos. Foi de partir o coração quando tivemos de nos despedir. Pra dizer a verdade, na época até pensei em ter um terceiro filho pra poder ficar com ela.” – Pág. 24
Pequenos trechos – como a da oitiva do adolescente de quem a personagem cuidou na infância – mostram que todo o zelo de Louise escondem uma mente perturbada há tempos. A pressão que ela mesma se impõe torna-se um fator de risco cada vez mais claro para os leitores, os quais começam a perceber um quê de macabro na aura da babá escondido nas entrelinhas do texto de Leïla.
Em meio aos elogios à eficiência e presteza da protagonista, a narrativa também descreve comportamentos no mínimo estranhos de sua parte, onde ela sai por alguns instantes do papel da doce mulher que vemos na maior parte do tempo.
É certo que Louise manipula todos à sua volta, mas particularmente não acredito que seja algo pensado exclusivamente para o mal. É mais uma característica maquiavélica – citando mais uma vez o pensador que emprestou sua frase no começo desse artigo -, onde os fins justificam os meios. Ou seja, ela precisa interpretar aquele papel para que não seja dispensada e precise voltar à sua vida miserável.
E isso nos faz pensar: até onde a compaixão pelos mais desprivilegiados nos cega para os seus defeitos? O sofrimento de alguém justifica qualquer coisa que essa pessoa venha a fazer?
Nesse ponto preciso mencionar a escolha de uma frase do clássico russo Crime e Castigo como epígrafe de Canção de Ninar. Ao citar a obra de Dostoiévski, Leïla evidencia sua intenção de transformar seu livro numa história mais sobre a miséria humana e a complexidade da mente do que sobre o assassinato, em si. A solução ou a justificativa para o crime – se é que há justificativa para algo tão monstruoso – não é importante e fica a cargo do leitor.
Leïla Slimani é uma marroquina radicada na França desde os 17 anos. Como sua mãe ainda vive no Marrocos, ela mantém uma relação próxima com o país. Essa história da autora se reflete na escolha de Paris como o local onde sua narrativa se passa e também na questão da imigração, que não é discutida profundamente mas é colocada através das várias babás citadas na trama.
Canção de Ninar foi lançado em 2016 e desde então já vendeu mais de 800 mil cópias e foi publicado em mais de 36 países. Mas apesar de ser uma obra de excelente qualidade, a qual inclusive indico muito a leitura, não é irretocável.
O primeiro problema que surge diz respeito ao desinteresse de Myriam e Paul em conhecer pelo menos um pouco da vida da mulher que iria cuidar de seus filhos. Caso eles fossem pais apáticos, essa falta de atitude seria justificável, mas não é essa a imagem que a autora constrói da família. Pelo contrário, ambos são pais carinhosos mesmo bastante desorganizados, sendo que o fato de terem outras aspirações na vida além da criação dos pequenos não descarta o amor que eles têm entre si.
“Mas Myriam não está de cara fechada. Deitada no sofá, com Adam nos braços, ela sorri com uma ternura maravilhosa. Está usando um pijama masculino, muito grande para ela. Paul senta-se ao seu lado, ronrona em seu pescoço, que cheira ao perfume de flores de que ele gosta.” – Pág. 56
E mesmo que a intenção fosse transformá-los em maus patrões, indo de encontro a tudo o que havia sido dito até então, essa falta de interesse não se justificaria pois até patrões ruins vão querer saber sobre a vida dos empregados, se não por preocupação com eles, seria para diminuir os riscos à própria família.
O fato é que Myriam e Paul confiam cegamente na babá, o que até justificaria a falta de preocupação com seu passado caso não sobreviesse o problema número dois: Louise dá indícios de que algo estranho esteja acontecendo, e não são apenas pequenos detalhes que pais desapercebidos deixariam passar. O episódio do frango – quem leu vai se lembrar e quem não leu, fique atento – mostra uma situação tão absurda que qualquer pessoa tomaria uma atitude, menos os pais carinhosos que a autora fez questão de construir.
Esses deslizes tiram um pouco da verossimilhança da trama, mas obviamente não descarta todo o trabalho de construção feito com a protagonista nem o impacto das discussões ensejadas pelo livro. A prova disso é que a obra foi ganhadora do Prêmio Goncourt de 2016.
O livro foi inspirado num caso real ocorrido em Manhattan, onde a babá Yoselyn Ortega assassinou duas crianças exatamente da mesma forma que Louise fez na ficção. O caso ocorreu em 2012 mas a condenação à prisão perpétua veio somente em 2018.
Apesar de a autora de Canção de Ninar ter dito em entrevistas que não leu mais do que um parágrafo sobre esse crime, toda a trama é bem similar à história real, desde o fato de Yoselyn também ser imigrante, passando pela forma com que a mãe encontra a cena do crime e a que o pai é avisado, até alguns problemas pessoais em comum entre as babás da ficção e a da realidade.
A edição da Tusquets tem folhas amareladas e uma boa fonte, o que, unindo-se à narrativa objetiva divida em capítulos curtos, possibilita uma leitura bastante confortável. O texto foi traduzido por Sandra M. Stroparo.
O leitor que se aventurar nessa história precisará buscar as respostas por si só, se transformando no próprio investigador tanto do crime quanto da mente de Louise. Para isso, é essencial que você se mantenha atento aos pormenores do cotidiano, sobretudo àqueles que aparentam insignificância à primeira vista. Encontre o sentido da história. É esse o desafio que a autora faz e que eu aconselho que você aceite.
Título original: Chanson douce
Autora: Leïla Slimani
Páginas: 192
Editora: Planeta do Brasil
Nota: 3/5
2 Comentários
Kelly Oliveira
Oi Michelly!
Esse já está na minha lista, fiquei mais interessada ainda agora. Pelo que li aqui, vou gostar.
Michelly Santos
Oi Kelly!
É um livro muito legal, sobretudo se você procura fazer uma análise psicológica da babá, pq é disso na verdade que se trata,o assassinato é meio que só o gatilho pra história… 🙂