Resenhas

Admirável Mundo Novo

Admirável Mundo Novo é um clássico distópico escrito por Aldous Huxley em 1932, cuja narrativa gira em torno de uma sociedade futurista (cerca do ano 2540) completamente alheia a qualquer laço afetivo. Não existe mais casamento nem o conceito de fidelidade, pelo contrário, as relações superficiais e até promíscuas são incentivadas. As pessoas são criadas em laboratório e a simples menção à palavra “mãe” é uma afronta ao sistema. E como não poderia deixar de ser, todas as religiões foram extintas, restando apenas o culto a Ford, o grande mentor daquela sociedade.

Os habitantes desse lugar têm a ilusão de estarem completamente satisfeitos com sua posição social, contudo, essa capa de felicidade é obtida tanto através da engenharia genética e condicionamento, quanto através de uma droga recreativa oferecida pelo governo chamada “soma”, a qual esconde a frieza daquele mundo. O resultado é inevitável, terminamos a obra sufocados pela história e pela perspectiva dela se tornar real.

O impacto causado pelo texto de Huxley é imediato, você já sente logo nas primeira páginas ao ser apresentado ao processo de criação e doutrinação dos seres humanos, divididos em castas e multiplicados de acordo com a necessidade da função a que são previamente destinados. Um único embrião pode dar origem a mais de 90 pessoas idênticas que servirão em fábricas ou qualquer outro trabalho que aquela sociedade considera de menor valor. Aqueles de classes superiores têm o benefício de serem únicos. Pelo menos fisicamente, já que não existe individualidade nesse admirável mundo novo.

“Gêmeos idênticos – mas não em insignificantes grupos de dois ou três, como nos velhos tempos da reprodução vivípara, quando um ovo se dividia às vezes, acidentalmente, e sim em dúzias, em dezenas, de uma só vez.
[…]
Um dos estudantes, todavia,cometeu a tolice de perguntar em que consistia a vantagem.
– Meu bom rapaz! – O Diretor virou-se vivamente para ele. – Não vê, pois? Não vê? – Ergueu a mão; sua atitude era solene. – O Processo Bokanovsky é um dos principais instrumentos da estabilidade social!
[…]
Homens e mulheres padronizados, em grupos uniformes. Todo o pessoal de uma pequena usina constituído pelos produtos de um único ovo bokanovskizado.” – Págs. 25-26

Na obra-prima de Huxley, as pessoas não podem ter acesso a nada que desperte qualquer sentimento. Por exemplo, a natureza não deve ser objeto de contemplação mas em contrapartida existem jogos rebuscados à vontade para distrair a população. O objetivo é simples, livrar a todos do fardo de pensar.

Você consegue perceber alguma semelhança com os dias de hoje? As pessoas estão cada vez mais mergulhadas em suas vidas virtuais, tudo gira em torno do entretenimento – música, televisão, internet – e dificilmente algo com um pouco mais de profundidade é bem aceito.

Até as discussões mais sérias são dominadas por uma certa acomodação. Você acredita em uma coisa, defende sua posição, às vezes ridiculariza quem pensa diferente, às vezes apenas ignora as diferenças. Você não tem o trabalho de dar uma chance aos pensamentos contrários porque, ah, você já sabe que a sua opinião é a melhor mesmo. Tá bom assim. Ou seja, nos livramos do fardo de pensar da mesma forma que no livro de Huxley, a diferença é que na história dele as coisas acontecem de uma forma mais clara.

A superficialidade das relações talvez seja o que mais incomoda na obra, mas então porque não nos incomodamos com a superficialidade do nosso próprio tempo? E essa é apenas uma das inúmeras perguntas que fazemos durante a leitura de Admirável Mundo Novo, um livro que incomoda e quase nos convence de que viver naquela sociedade não seria assim tão ruim.

Um exemplo disso é o fato de que eles não sofrem pela morte, algo que parece bom à primeira vista. Mas o custo disso é alto demais e se ampara na ausência de afeto entre os personagens. As pessoas desse lugar não sofrem, mas também não amam. E assim Huxley nos confunde durante toda a narrativa.

Admirável Mundo Novo é um livro relativamente curto mas que exige atenção. Há nele diversas descrições de processos científicos pelos quais os seres humanos são criados, há também certas divagações de alguns personagens, mas tudo está ali por algum motivo. As entrelinhas dessa história dizem mais do que o próprio texto, inclusive no que diz respeito às escolhas dos nomes dos personagens e dos trechos de Shakespeare utilizados. Aliás, o título dessa obra foi retirado de uma fala em A Tempestade, de Shakespeare.

“- ‘Oh, admirável mundo novo!’ – repetiu. – ‘Oh, admirável mundo novo, que encerra criaturas tais!’… Partamos em seguida.
– Você tem às vezes um modo de falar bem curioso – disse Bernard, admirado e perplexo, encarando-o. – E, de qualquer modo, não seria melhor se você esperasse para ver esse mundo novo?” – Pág. 171

Essa não é uma história que ataca os avanços da ciência e tecnologia, mas sim alerta para a forma com que esses avanços podem afetar a vida da sociedade, nos transformando em escravos no lugar dos deuses que pensamos ser.

Huxley defende que o novo totalismo não vem da imposição da força como outrora foi concebido , mas sim de uma população convencida a amar sua servidão. Para ele, a promiscuidade sexual é também um mecanismo de controle utilizado pelos novos ditadores pois ela seria uma forma de compensação pela falta de liberdade política e econômica. Nesse contexto, as famílias só têm alguma serventia como massa de manobra para colonizar territórios, caso contrário a ausência de laços afetivos é muito mais útil para o estabelecimento de um governo todo-poderoso.

A edição da Biblioteca Azul foi traduzida por Lino Vallandro e Vidal Serrano, e conta com um prefácio escrito por Huxley em 1946, onde ele tece algumas críticas à sua história e sugere uma outra saída para o personagem que fica conhecido como Selvagem. Além disso, o autor também explica algumas de suas intenções, demonstra preocupação com a corrida armamentista na Guerra Fria e expõe brevemente suas opiniões políticas.

Recomendo a leitura dessa pequena introdução, é um texto realmente muito esclarecedor. Mas, se posso dar mais um conselho, o leiam depois de terem terminado o livro pois ele tem algumas informações que podem ser consideradas spoiler para alguns leitores.

Um clássico não ganha esse lugar à toa, mas sim porque ultrapassa gerações e nos faz pensar. Foge à superficialidade, incomoda, provoca questionamentos. Talvez por isso muita gente se afasta deles, o que nos faz correr o risco de viver num mundo cada dia mais imoral, irresponsável e sem propósito. Não deixe que isso aconteça, não seja parte do admirável mundo novo.

Autor: Aldous Huxley
Editora: Biblioteca Azul
Nota: 4/5

6 Comentários

  • Gabriela Gomes dos Santos

    Oi, Michelly! Tudo bem?

    É claro que eu já tinha ouvido falar deste livro (na escola, um professor falava muito dele) até por ser um clássico, mas acredita que esta resenha é a primeira que eu leio sobre sobre este livro?
    Bom, eu nunca o li, mas tenho muita curiosidade e fiquei ainda mais curiosa por causa de alguns pontos que você destacou. Não sofrer pela morte poderia ser bom, mas viver sem amor? Acho que deve ser incrível uma leitura onde os personagens estão condicionados a não pensar, deve ser inquietante.

    Pretendo lê-lo, com certeza. Parabéns pela sua resenha, ficou incrível.

    Beijos,
    Blog Magia é Sonhar
    Canal Magia é Sonhar

    • Michelly Santos

      Oi Gabi!
      Esse realmente é um livro inquietante. É impossível não nos colocarmos no lugar dos personagens e até questionamos muita coisa da nossa vida real mesmo. Indico demais, leia sim!
      Muito obrigada pelo carinho!
      Beijo!

    • Michelly Santos

      Oi Denise!
      Pelo contrário! O início do livro, mesmo com as explicações científicas, te prende justamente pelo absurdo de toda aquela situação. No meio da trama é que são inseridos uns trechos mais lentos, um pouco mais reflexivos, mas nada que torne a narrativa chata. Recomendo demais!
      Beijos!

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