5 narradores que te enganaram e você (provavelmente) nem percebeu
No último post, conversamos sobre o foco narrativo e a importância do narrador numa obra literária, onde vimos que o leitor pode até ser direcionado a algum tipo de conclusão dependendo da intenção de quem narra a história. Vimos também que a narrativa em primeira pessoa não é confiável na maioria das vezes, já que mostra apenas um ponto de vista. E todos sabemos que uma história tem muito mais do que dois lados, certo?
Para provar o quanto podemos ser enganados por esses narradores perspicazes, a lista de hoje mostra cinco exemplos de obras onde talvez a narrativa tenha direcionado suas conclusões para onde ela queria, e você nem percebeu…
1. Humbert Humbert (Lolita, Vladimir Nabokov)
A primeira delas é a mais óbvia e eu sei que os leitores já estão de olho na sagacidade de Humbert Humbert, o narrador de Lolita. O personagem já começa o texto declarando sua adoração por Lolita num dos inícios mais belos da literatura: “Lolita, luz da minha vida, fogo da minha carne. Minha alma, meu pecado. […]”. E assim segue numa narrativa que tenta – e às vezes consegue – colocar o leitor ao seu favor. H. H. nos conduz numa história trágica e extremamente cruel onde uma garotinha é abusada, mas muitas vezes parece que estamos diante de uma mulher sagaz e sedutora, que leva o homem – muitos anos mais velho que ela – a perder a cabeça e cometer as maiores loucuras por amor. Nós temos, sim, a noção de que aquilo é errado, mas a forma lírica e bela que é utilizada na narrativa muitas vezes nos afasta da verdade nua e crua daquela história. Prova disso é que alguns até a classificam como uma história de amor. Não. Simplesmente, não.
2. Jane Eyre (Jane Eyre, Charlotte Brontë)
As irmãs Brontë foram geniais em tantos aspectos que fica repetitivo vir aqui falar sobre mais uma das habilidades delas. Mas talvez você, que leu a obra-prima de Charlotte, não tenha percebido uma coisa. Jane Eyre é um exemplo de mulher. Batalhadora, forte, resiliente e com um excelente caráter, ela nos conquista já nas primeiras páginas e quando terminamos o livro estamos completamente fascinados pela imagem daquela mulher que queremos ser um dia. Mas quem narra a história é a própria Jane Eyre, ou seja, o leitor a conhece através dela mesma. Pensa comigo: se você fosse narrar sua história, seria totalmente imparcial? Eu não, e vamos ser sinceros, você também. Jane até conta sobre determinadas atitudes que podem ser entendidas como uma fraqueza (como o final, por exemplo), mas no fundo tudo é justificado pelo amor e pela bondade da personagem, enquanto na verdade a existência daquele relacionamento é doentia. Continuo amando esse livro – meu preferido no mundo, por sinal – mas sei que Jane não era tão perfeita quanto parece, mesmo que, pra mim, ela ainda seja um exemplo de mulher.
3. Kvothe (O Nome do Vento, Patrick Rothfuss)
Kvothe é outro exemplo de personagem que narra sua própria história e cria, para o leitor, a imagem que quer de si mesmo. Ele se mostra inteligente, esperto, competente na magia e até experiente no sexo. Tudo o que ele valoriza em alguém, espelha em si mesmo. Não que o personagem não seja tudo isso, mas se você ler com atenção vai perceber que essas características que ele destaca em sua personalidade são exatamente as mesmas que ele valoriza em outras pessoas. Em outras palavras: eu valorizo pessoas inteligentes, portanto eu quero que as pessoas me enxerguem como alguém inteligente. Pronto. É isso o que Kvothe faz. Por isso, apesar dele ser meu personagem masculino preferido na literatura, fico me perguntando, até onde ele é exatamente aquilo que descreve? Você já se perguntou isso ou só admitiu o que ele te contou como verdade absoluta? Viu como a gente é levado à conclusões de acordo com a vontade do narrador?!
4.Olympia (Geek Love, Katherine Dunn)
A narradora de Geek Love sofre do mal chamado “amor em excesso”. Ela ama tanto a família que parece incapaz de enxergar os defeitos – escancarados, diga-se de passagem – de cada um de seus membros. O leitor percebe, tanto porque é óbvio o absurdo daquela história, mas ela sempre justifica as atitudes dos outros personagens, principalmente de seu irmão mais cruel, por quem ela é, inclusive, apaixonada. Oly é complacente em todos os momentos, o que pode levar o leitor a enxergar justificativas para o injustificável. Se Arturo é cruel, é porque sofreu. Se Miranda foi pelo caminho errado, foi porque não teve escolha. Se ela própria toma uma decisão drástica no final, foi por amor. Nunca há o conceito de responsabilidade nessa história, apenas justificativas para que os personagens façam atrocidades e mesmo assim nós o enxerguemos como coitados. E o pior é que, às vezes, nós caímos nessa.
5. Bentinho/Machado (Dom Casmurro, Machado de Assis)
Por fim, o famoso ciumento Bento Santiago. Sim, ele é inseguro, possessivo e superprotegido. Ao mesmo tempo, Capitu é maravilhosa, uma mulher forte e apaixonada. Logo, mesmo que o personagem nos dê vários motivos para acreditar que ela o traiu, na maioria das vezes nós não acreditamos, afinal não dá pra acreditar cegamente em um homem fraco e cheio de defeitos como Bentinho. Por outro lado, temos Machado, o narrador por trás do narrador, e o Bruxo do Cosme Velho era esperto o suficiente para nos pregar uma peça, afinal existem sim elementos na trama que nos levam a, de fato, desconfiar da fidelidade de Capitu. Nós sabemos que o autor não deixaria nada tão óbvio, portanto ao mesmo tempo que a tal traição parece coisa da cabeça do Bentinho, quem garante que não aconteceu? Machado, pelo menos, não garante nada. Aliás, ele vai além e te mostra dois caminhos completamente possíveis te dando elementos para seguir em qualquer um deles. Machado faz o que quer com o leitor e seja qual for sua conclusão – traiu ou não traiu? -, foi ele quem te levou propositalmente à ela.
2 Comentários
Rudi
Oi Milly, Então… Bentinho não me engana, talvez ele seja louco, inclusive acredito que seja, o ciúmes o enlouqueceu. Mas a meu ver nunca houve traição por parte da Capitu.
Sobre Kvothe, pode me enganar a vontade, esse livro é tão maravilhoso que ele poderia me xingar abertamente que eu ia continuar amando hehehehe
Michelly Santos
Eu também amo Kvothe! É meu personagem masculino preferido (feminino é Jane Eyre) e a história dele é realmente incrível! O terceiro livro que não sai nunca, né?! :/