O Cemitério, de Stephen King: livro X filme
Recentemente, li a obra O Cemitério, publicada pelo rei do horror, Stephen King, em 1983 e assisti a sua adaptação para o cinema lançada em 2019. Além desse, existem outros dois filmes baseados na obra de King, um de 1989 e outro de 1992. Este último conta uma história diferente, a qual se passa após os acontecimentos da obra original. Contudo, esse artigo levará em consideração apenas a versão mais recente.
Ela pode não seguir exatamente o texto de King, mas mesmo com as mudanças substanciais que ocorrem, é um filme que, sim, passa a mesma mensagem que o livro e contém a gênese da história.
Mas antes de continuar, preciso avisar a você que esse post conterá spoilers tanto do livro quanto do filme, já que a intenção é analisar as diferenças desses dois formatos e como elas acabam resultando numa só mensagem. Portanto, se você não leu o livro ou não assistiu à adaptação de 2019 e NÃO gosta de spoilers, salve essa página para ler depois. Se você já leu e assistiu, ou não se importa de saber antecipadamente sobre partes cruciais da trama, vamos à análise!
As diferenças começam já no ritmo das tramas. Graças à sua natureza mais detalhista e por não ter que respeitar limites como tempo e orçamento, por exemplo, a narrativa de um livro tende a ser mais lenta do que a de sua adaptação cinematográfica. E é exatamente isso o que ocorre com O Cemitério, lançado no Brasil como Cemitério Maldito e no original como Pet Sematary.
No livro, estamos dentro da mente dos personagens: conhecemos suas emoções, suas motivações, suas dúvidas. Já no filme tudo isso é passado através da atuação dos atores, logo, observar uma expressão toma menos tempo do que ler a descrição sobre os sentimentos de alguém, o que por si só, traz essa diferença no ritmo.
Pra ficar claro, cito o exemplo da caminhada de Louis até o cemitério Micmac. No livro acompanhamos todo o percurso feito pelo protagonista, o que ele estava sentindo e pensando, como era o terreno onde ele estava pisando, o que ele via entre as árvores da floresta e até quantos degraus a entrada para o cemitério tinha. Já no filme essa caminhada é mostrada através de cenas rápidas, mas que conseguem passar exatamente aquela longa descrição do livro. Isso porque o autor precisa descrever detalhadamente um local para que o leitor o imagine de forma satisfatória, enquanto a imagem mostra o local de forma direta e pronto.
Uma das coisas que mais me incomodaram no livro foram as duas caminhadas que Louis faz até esse cemitério, onde King optou por uma narrativa praticamente idêntica nos dois trechos, ambos longos e bastante detalhados. A segunda vez que o personagem vai até o local poderia ter sido mais rápida, afinal, o leitor já sabia tanto o caminho quanto o destino. Por isso, a opção do filme em “resumir” essa parte me pareceu acertada.
Contudo, com relação ao cemitério Micmac, em si, acredito que o filme poderia ter explorado melhor a fotografia das cenas, visto que a adaptação não mostra direito o lugar, enquanto que no livro temos uma ideia bem melhor de como ele é, graças à descrição pormenorizada de King, que aqui é muito bem-vinda.
Essa maior liberdade do livro para detalhar alguns acontecimentos me agrada, sobretudo, na ambientação inicial. O autor consegue nos inserir na nova casa dos Creed, nos apresenta o terreno e também um outro personagem muito importante: Jud. Além disso, logo que a família chega em Ludlow, o filho mais novo, Gage, é picado por uma abelha, o que o leitor logo entende como um mau agouro.
O filme até coloca a cena da abelha, contudo ela ocorre mais pra frente e com a filha mais velha, Ellie. Depois de saber o que aconteceria mais tarde, compreendo que enquanto no livro a grande tragédia viria através do personagem Gage, no filme essa mesma tragédia viria através de Ellie. É interessante esse cuidado em fazer com a abelha representasse, de forma bastante sutil, quem seria a primeira vítima daquela família, mas ainda assim eu preferi a ambientação feita na obra de King, a qual apresentou melhor o lugar e seus perigos.
Outra diferença relevante encontra-se na forma como o “Simitério de Bichos” é apresentado. Enquanto no livro, Jud leva a família toda para conhecer o local e explica um pouco sobre ele, no filme Ellie segue uma procissão fúnebre de crianças mascaradas indo enterrar um cachorro e descobre, sozinha, o tal “Simitério”. É só lá que ela é surpreendida por Jud, que a ajuda quando ela é picada pela abelha.
Particularmente, considero que as duas soluções para a apresentação do cemitério de bichos tenham sido satisfatórias, cada uma funcionando bem para seu formato.
Também vale citar, rapidamente, outras quatro diferenças. A primeira delas diz respeito ao trauma da mãe, Rachel, muito melhor explorado no livro. Entretanto, considero essa mais uma decisão acertada do filme, já que dar espaço para uma trama secundária significaria tirar espaço da trama principal, o que não seria interessante. Além do mais, a forma creep como a morte de Zelda foi retratada – até mais do que no livro, já que ela morre de formas diferentes em cada formato -, justificou perfeitamente a fobia de Rachel.
A segunda diferença diz respeito à degradação mental de Louis. Por mais que o ator tenha feito um excelente trabalho em apresentar um homem transtornado pela perda de um filho e que seu declínio tenha ficado claro na adaptação, as transformações na personalidade do personagem foram ainda mais brilhantemente trabalhadas por King durante sua narrativa. No filme, a decisão de desenterrar Ellie para enterrá-la novamente no cemitério Micmac parece um pouco abrupta. Já no livro ele mastiga a ideia por dias antes de tomar sua decisão, o que me parece mais plausível tendo em vista a gravidade do que ele estava prestes a fazer.
A terceira mudança é a desavença entre Louis e o sogro. Esse tipo de conflito é muito interessante num livro porque traz certa profundidade ao personagem, e quem me conhece sabe o quanto eu valorizo a construção dos personagens de uma história. Mas no filme, assim como o caso de Zelda, ocuparia um espaço precioso para que a trama principal fosse desenvolvida. E numa produção cinematográfica, considero que o essencial seja criar uma trama com início, meio e fim bem trabalhados. Por isso, achei boa a opção do filme de ignorar esse problema entre os dois.
E a quarta alteração é sobre Norma, esposa de Jud. No livro, ela está viva até a metade da obra, mas acaba morrendo durante a narrativa e em momento nenhum Jud considera enterrá-la no cemitério Micmac. No filme ela já está morta há algum tempo, e fica subentendido que Jud a enterrou naquele lugar amaldiçoado e depois se arrependeu. Não fica claro se é isso mesmo nem se ele a matou novamente quando percebeu o que tinha feito, mas fato é que, apesar de ser uma mudança grande na trama, não fez muita diferença pra história.
Falemos, então, sobre a maior modificação do filme com relação ao livro: enquanto na obra de King é Gage, o bebê da família que morre; na adaptação a vítima é Ellie. Eles morrem da mesma forma, atropelados por um caminhão, mas quando li o que acontece depois que Gage volta “à vida”, fiquei imaginando como eles fariam uma criança tão pequena interpretar cenas matando pessoas e até comendo cadáveres (porque, se você não notou, Gage come um pouquinho de Jud depois de matá-lo).
Eis que fiquei satisfeita quando fui surpreendida pela morte de Ellie (já que o filme te leva a acreditar que é Gage quem será atropelado). Como ela é uma criança maior, foi possível uma interação mais macabra com os outros personagens depois que ela volta dos mortos. Por sinal, a dança de balé que a Ellie zumbi faz é bem tenebrosa.
Graças à idade da atriz, também foi possível trazer uma carga dramática mais poderosa no encontro entre mãe e filha, tanto porque achei que a Rachel do livro aceitou muito bem o fato do filho morto estar ali na frente dela, aparentemente vivo. Claro que a felicidade de ter seu bebê de volta provavelmente falaria mais alto, mas ela sequer titubeou sendo que havia acabado de enterrá-lo. Outro ponto que achei problemático no livro é o fato de uma criança de menos de 2 anos conseguir matar adultos com um bisturi. Pegar de surpresa e ferir é uma coisa, ganhar do adulto numa luta corporal é outra. Nesse ponto o filme foi mais realista, se é que podemos usar essa palavra pra falar de uma produção cujos mortos voltam à vida.
Algo que lamento muito com relação à adaptação, é que a cena em que Louis desenterra Ellie ficou muito aquém da descrição do livro em que ele desenterra Gage. Tanto a ação quanto o estado em que ele encontra o filho, começando a apodrecer e com bichos se alimentando do corpo, é a cena mais aterrorizante do livro, enquanto que no filme foi rápido, fácil e a garota estava imaculada dentro do caixão.
Uma observação que faço sobre essa troca de vítimas entre livro e filme é que o segundo mandou MUITO mal na escolha de seu material de divulgação. Um de seus pôsteres traz nada menos que a MENINA MORTA EM DESTAQUE. E como se não bastasse isso, o segundo trailer mostra que é realmente a menina que morre. Ou seja, caso o cartaz não tenha deixado claro, o trailer confirmou. Mas se a intenção do filme era nos fazer acreditar que Gage seria atropelado (como no livro) para, então, nos surpreender em seguida, por que eles revelaram a surpresa no material de divulgação?!
Como falei, eu fui surpreendida, mas é porque ultimamente os filmes estão dando tanto spoiler no material de divulgação que quando fico sabendo sobre o lançamento de algo que me interessa, só busco a data e fujo de tudo mais. Não vejo cartaz nem assisto ao trailer. E ainda bem, porque o ponto alto dessa adaptação, pra mim, foi Ellie ter morrido no lugar de Gage. Saber disso antes poderia ter estragado completamente minha experiência.
E, por fim, o fim. A edição definitiva da adaptação optou por uma ação final diferente do livro mas que acabou chegando ao mesmo lugar: uma família destruída pela influência maligna do cemitério.
Gostei mais do filme com relação à forma com que se deu a morte da mãe mas, apesar de ter gostado do final do pai, não acho plausíveis as decisões que ele toma naquele ponto. No livro, Louis também mata – novamente – Gage, assim como tenta matar – novamente – Ellie no filme, mas sua motivação para matar a filha foi o fato de não querer que a esposa fosse “ressuscitada” e eu acho que ele já estava muito louco pra ter a lucidez de que não deveria repetir o erro.
Há um final alternativo para esse filme, o qual Ellie convence o pai a ajudá-la a enterrar a mãe no cemitério Micmac, o que eu acho bem mais factível pois Louis, completamente transtornado como já se encontrava, concordaria com sua filha zumbi facilmente. Por isso, gosto mais desse final, que é inclusive bem mais macabro com Rachel chegando em casa e a família se reunindo novamente (inclusive o gato, que não citei aqui porque não tem muitas mudanças com relação a ele, a não ser que no filme ele está um pouco mais cruel).
Em minha opinião, o filme, mesmo que com várias diferenças, chegou ao mesmo lugar que o livro. E a maioria dessas mudanças era necessária para que a adaptação se desenvolvesse de uma forma mais fluida.
Ao contrário do livro, que parece muito mais com um drama do que com um terror, o filme é claramente de terror. Eu não costumo ter medo de filmes e livros de terror, portanto meu critério aqui não é o “medo” mas sim o clima de cada formato. Enquanto no livro eu me senti triste e angustiada pelo peso da perda que permeia a história, no filme fiquei mais apreensiva e consegui focar no sobrenatural.
Fato é que tanto livro quanto filme têm seu valor e, para mim, ambos são muito bem trabalhados. Confesso que minha experiência com o livro não foi exatamente algo agradável, mas quanto mais penso nele, mais descubro pontos positivos. Já o filme foi uma experiência melhor para mim, chegando a ser até divertida já que se trata de um de meus gêneros preferidos do cinema.
E você, já leu ou assistiu a essa história? Se sim, me conta o que achou. Se não, me conta quais são suas expectativas.
Um beijo e até o próximo post!